Entre o escambo e o pré-capitalismo as cadeias brasileiras se mantêm em pé — numa economia subterrânea, miúda, diária, corriqueira e, sobretudo, invisível para a sociedade. Não se trata aqui do tráfico pesado promovido nos presídios pelos poderosos líderes das mais diversas facções criminosas, ou seja, não é da elite da massa carcerária que estou falando. A microeconomia submersa nas celas, à qual me refiro, é aquela que gira em torno de uma escova de dentes, de uma toalha, papel higiênico, pacote de bolacha recheada, um cigarro de maconha ou maço de cigarros lícitos, sabonete contra sarna… ah!… pastel… preso ama pastel, de palmito então…! É nisso tudo, e é claro que muitos outros itens podem ser incluídos, que se dá a troca simples ou a troca já intermediada por margem de lucro, por mais ínfima que ela seja.

Não poupemos o leitor: cadeias são construídas para bandidos, e bandidos estão a léguas de distância de atitudes altruístas – caso contrário, se eles sentissem empatia pelo semelhante, certamente não seriam bandido. Mas deixemos isso para outro ensaio que se faça no campo da psiquiatria, da neurologia e da neurociência. O que importa registrar é que também a prática de escambo ou de pré-capitalismo entram no auxílio que um presidiário possa dar, por exemplo, a outro presidiário que seja paraplégico, cego ou demente – cegueira há em função do diabetes, paraplegia há porque nas ruas a polícia atira muito nos joelhos e na coluna vertebral durante perseguições, demência há porque… dispensa explicação: cadeia é usina de louco. Espero, então, que tenha ficado claro qual é o alicerce básico das penitenciárias: nada nelas é de graça. Retire-se radicalmente a oportunidade de negócio que um preso possa ter sobre outro preso e não restará um detento entre os muros, é todo mundo fugindo. E, a julgar pelas corajosas palavras de ninguém menos que o próprio ministro da Justiça, Alexandre de Moraes (“o problema do sistema prisional é a corrupção”), é provável que alguns guardas também fossem procurar outro emprego. Nas cadeias, repita-se, nem bom dia é de graça.

Há uma moeda corrente nessa microeconomia invisível que são maços de cigarros, os mais baratos (não cito as marcas para não queimá-las). Esses maços não se destinam apenas aos pulmões de seus donos, mas são estocados nas celas como investimento garantido para a aquisição de produtos. Um rolo de papel higiênico vendido de detento para detento pode custar até cinco maços, um pacote de bolacha de água e sal também, acrescente mais um maço e se comprará um cigarro de maconha – o pastel de palmito é bem mais caro que a própria maconha, absurdamente alcança a cotação de um pacote (dez maços). Quando as autoridades falam que no Brasil o gasto com cada preso ultrapassa a casa dos dois mil e quinhentos reais por mês, sinceramente pergunto se as refeições, sempre muito básicas e ruins, saem por tal custo. E a indagação cabe porque, muitos outros itens, ou o preso pobre compra do preso remediado ou ele fica a ver navios – melhor, grades.

Quanto mais maços de cigarros o detento tem estocado em sua cela, melhor ele está financeiramente. Parte desses cigarros o presidiário usa nas suas próprias compras, parte ele manda para fora do presídio, onde será revertido em dinheiro, vendido em favelas. Como já vieram com lucro para o preso, fruto de alguma transação com outro preso, mesmo sendo vendidos mais barato nas comunidades, os maços continuam gerando mais lucro. O dinheiro obtido na venda é depositado aqui fora na conta de algum conhecido do presidiário, e, na forma de mercadorias que tenham demanda na cadeia, ele volta para dentro dos muros. É uma engrenagem financeira contínua.

Houve um tempo em que autoridades do sistema prisional até gostavam que maconha circulasse nos presídios devido ao seu (traiçoeiro) efeito ansiolítico – com maconha a cadeia dormia, sem ela ficava agitada. Hoje, ela se tornou (mais que a cocaína) a principal fonte de lucro no comércio entre os sentenciados. Vale perguntar: e o preso que não tem um rato para puxar pelo rabo (como foi dito acima, esse artigo não trataria das elites que chefiam facções), como tal preso faz para sobreviver? Ele ganha maços de cigarros (de novo a moeda corrente) para segurar B.O. de droga ou celular que seja de outro detento. Explica-se: ele guarda em sua cela o que é proibido e assume a paternidade da coisa que não é dele em caso de blitz. O dono fica incólume, e o que segurou a onda vai para o castigo. Lei da selva é pouco, é lei do inferno. Se ele se endividar, nunca mais consegue sair do atoleiro. Os juros de cadeia são escorchantes. Se você não paga a dívida de um maço, no mês seguinte são dois maços, depois quatro, dezesseis e assim por diante. À certa altura, o arquiendividado terá de pagar fornecendo a própria esposa como visita íntima ao credor. Elas, as esposas, podem ter os cabelos totalmente cortados. Eles serão vendidos em lojas de perucas em favelas, e aí o dinheiro percorre o mesmo ciclo já explicado acima.

Faz parte do passado o truque de escrever cartas com base em um código de letras. Era assim:

Z E N I T

P O L A R

Se, por exemplo, o preso quisesse escrever na carta a palavra maconha, ela sairia da seguinte forma, seguindo esse método:

Como M não existe em ZENIT POLAR, M é M. Ao A corresponde o I; o C é C porque também não existe. Ao O corresponde o E, ao N corresponde o L, e assim sucessivamente. Maconha virava no texto, então, M I C E L H I. Imagina mais de sete mil cartas escritas assim (hoje os sete mil são seiscentos e cinquenta e seis mil presos), não havia guarda capaz de decifrar uma a uma e ver quais eram perigosas. Enlouquecedor. Hoje, reina o celular. E claro que intriga o leitor a questão de como ele e também as drogas entram nos presídios. Familiares os levam? Um ou outro, não mais. Nos dias de visita, por exemplo, mulheres agacham três vezes, nuas, para a agente se certificar de que não há nada escondido em seus órgãos genitais. Mais: a mulher senta, também nua, em banquinhos infectos que são detectores de celulares. Além do mais, convenhamos que é tanto celular apreendido que não há visita que dê conta de introduzi-los nas cadeias — lá dentro custam em média cinco mil reais. Há mulheres que são flagradas (chamadas presas de portaria) tentando burlar a vigilância, mas nas recentes rebeliões até metralhadoras se viu, e isso não dá para nenhuma visita camuflar, concorda? O mesmo ocorre com a enorme quantidade de drogas. Como entram? Fiquemos então com a frase do ministro Alexandre de Moraes que pôs, não o dedo, mas as duas mãos na ferida: “o problema do sistema prisional é a corrupção”. A situação é de impasse e o impasse é cão girando atrás do próprio rabo: sem essa microeconomia subterrânea, a cadeia sobe (se rebela); com essa microeconomia subterrânea, a cadeia apodrece e sobe também.