O drama vivido por qualquer mãe diante da enlouquecedora perspectiva da perda de seu filho (dor e sofrimento que o teatro grego denominava de tragédia) foi descrita de forma definitiva pelo compositor Chico Buarque sob a forma de outro torturante sentimento, o da saudade: “a saudade é o revés do parto/ a saudade é arrumar o quarto/ do filho que já morreu”. É essa a tragédia que, desenrolando-se na pequena cidade goiana de Trindade, emocionou todo o Brasil na semana passada: a professora Edina Maria Alves Borges é mãe de José Humberto Pires de Campos Filho, um jovem de 22 anos de idade, portador de doença renal crônica. Até que possa se submeter a transplante de órgão, o seu tratamento é a desconfortável e debilitante hemodiálise. Ele não quer, no entanto, se tratar, entregou-se esmorecido às mãos da doença. Mais: ele quer morrer! A mãe, em suas próprias palavras “transtornada e desesperada”, foi então à Justiça e conseguiu uma decisão liminar que obriga José Humberto a se submeter à hemodiálise. Na quinta-feira 16 era ele quem jurava que também recorreria à Justiça com o intuito de reverter a decisão, embora já entreabrindo uma fresta para a vida ao admitir que poderia desistir da busca por uma decisão judicial que lhe desse “o direito à morte”.

A fala da mãe arranca lágrima até de infanticida, tamanha é a dor: “é egoísmo uma mãe querer que o filho não desista de viver? Acho que não”. A fala do filho arranca lágrima até de matricida, tamanha é a dor: “é melhor que seja do meu jeito, vou brigar para morrer. Minha mãe me ofereceu um de seus rins, mas não quero transferir-lhe o que estou passando”. Dor de ambos os lados, assim segue a história, e imediatamente uma discussão foi colocada assim que ela invadiu os corações e mentes dos brasileiros: José Humberto tem o direito de querer morrer? Tal discussão, obviamente, deve seguir a racionalidade da lei e dos preceitos da ética. É, digamos, a discussão na qual togas pretas e jalecos brancos não podem, pelo menos publicamente, se emocionar. Não está-se, aqui, no campo da eutanásia nem da ortotanásia. A primeira é proibida no Brasil e implica submeter o paciente terminal a um procedimento que o leva à morte – assistida e sem dor. Na ortotanásia, que é admitida no País, o doente terminal com enfermidade irreversível é privado dos chamados “procedimentos fúteis”. Por fim, o Conselho Estadual de Medicina de São Paulo já determinou que “todo paciente adulto, e com capacidade preservada de deliberar sobre riscos, tem direito de abster-se de propostas terapêuticas que lhe são oferecidas”. Mais: o Código de Ética Médica diz que o profissional tem de obter o consentimento do paciente (ou de seu representante legal) sobre o tratamento que será seguido (a exceção são os casos nos quais haja iminente risco de morte). Essa é a discussão fria, que José Humberto, seus médicos e os juízes terão de enfrentar, fazendo-se novamente a ressalva de que ele pode mudar de ideia e até lutar pela vida.

Olhe-se agora a outra abordagem, mais humana e quente, dessa luta de mãe contra filho, para que ela o veja em um quarto de hospital ou no quarto da casa, e não no cemitério: crianças, adolescentes, jovens, adultos, idosos se submetem, claro que não cantarolando mas sim xingando o mundo e erguendo a mão contra Deus, à terapia de hemodiálise e transplante de rim. Há quem nem melhore nem piore, há que viva muito bem, há quem morra. Mas a regra da doença, paradoxalmente, é a pulsão pela vida. Por que então um jovem de 22 anos quer entregar os pontos e morrer? A conversa abstrata, geralmente de mesa de bar e que acaba em glicose na veia, sobre a liberdade do ser humano de tirar a própria vida, é coisa de quem quer acender vela para o outro mas sente calafrios somente de pensar em seu próprio velório. Alimentou teorias filosóficas ralas, filmes tolos e livros que hoje são compráveis por um real e noventa e nove centavos. Ninguém que não esteja deprimido busca tão facilmente a morte como o jovem José Humberto está procurando. Vale a pergunta: mas alguém em pleno gozo das faculdades mentais não pode querer escolher morrer? A questão não é se pode ou não pode, a questão é que psiquiatricamente a opção pela morte (excluindo os casos de enfermidade grave, progressiva, dolorosa e irreversível) embute sempre um estado depressivo. E, nesse ponto, podemos afirmar que o gatilho genético depressivo de José Humberto sempre esteve lá, pendulando em sua alma, e a doença que agora se manifesta é somente o dedo que aperta tal gatilho.

“Imaturidade emocional”

José Humberto morou nos EUA com o pai, praticava esporte, levava vida de gente saudável. Numa sexta-feira de 2015 sentiu os pés inchados, foi ao hospital e diagnosticaram-lhe falência renal – mas ele não aderiu ao tratamento e recusou a chance de transplante. Voltou a Trindade, a mãe reencontrou um filho esquálido, levou-o ao médico – ele fez sessenta sessões de hemodiálise mas novamente não houve adesão nem a aceitação de órgão doado. Assim foi a coisa, até que lhe deram quatro dias de vida. Nesse entra e sai de hospital, nesse entra e sai de fórum, a perícia médica do Tribunal de Justiça de Goiás atestou que o jovem “tem imaturidade afetiva e emocional” (ou seja, sofre de depressão de base), e isso prejudica a sua capacidade de tomar decisões. O juiz ordenou então que ele faça hemodiálise. Na quinta-feira, em conversa com ISTOÉ, a mãe Edina desabou: “não se trata de disputa judicial, o que eu quero mesmo é que ele não morra aqui na minha casa”. Mãe nunca cansa não, é estratégico esse seu aparente descaso. É que talvez assim, se vendo sem plateia, o filho decida optar pelo óbvio: a vida!

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