A população indígena também foi alvo de operações ligadas ao Serviço Nacional de Informação (SNI) durante a ditadura militar. Uma pesquisa encomendada pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) estima que ao menos 8.350 índios foram mortos entre 1946 e 1988. Além da violência direta do Estado, os povos indígenas sofreram com a omissão do governo.

O documento, elaborado em 2014, fez uma série de recomendações específicas ao massacre indígena. Entre as quais, que o Executivo brasileiro fizesse “um pedido público de desculpas aos povos indígenas pelo esbulho das terras desses povos e pelas demais graves violações de direitos humanos ocorridas sob sua responsabilidade direta ou indireta no período investigado, visando a instauração de um marco de um processo reparatório amplo e de caráter coletivo”.

A Funai afirma que esse reconhecimento já aconteceu, e menciona um pedido de perdão, mas ele é questionado por pesquisadores. Além disso, a CNV cobrou do governo a instalação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade. O grupo deveria estudar as graves violações de direitos humanos contra esses povos, visando aprofundar os casos não detalhados no presente estudo. Mas nada saiu do papel.

Os documentos obtidos por ISTOÉ mostram que, apesar de apesar de até hoje não haver uma ação ampla de reparação aos índios, militares e servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai) admitiram em relatórios reservados que o Estado fez parte da matança de centenas de indígenas durante os anos da repressão. Os papéis foram catalogados pelo jornalista Rubens Valente durante pesquisa para o livro “Os fuzis e as flechas” (Companhias das Letras) que ele lança neste mês sobre mortes em comunidades durante a repressão e que será tema de audiência pública da Comissão de Direitos Humanos do Senado na quinta-feira 20.

Valente evita entrar em discussão sobre o número de mortos, porque, segundo ele, muitas estimativas são baseadas na época em que os indígenas não tinham contato com a dita população civilizada. O jornalista acredita que a repressão militar cometeu graves violações às comunidades nativas sob o argumento de “integrar” essa parcela dos brasileiros à ala da cidade e não atrapalhar grandes empreendimentos de infraestrutura.

Violência e descaso
Relatório da Comissão Nacional da Verdade mostra como povos indígenas foram violados na ditadura

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No livro, sete dos mais de 20 casos listados relatam 532 mortes. Um exemplo é o massacre das tribos Parakanãs e Beiço de Pau (Tapayuna), uma situada no Pará e outra no Mato Grosso, respectivamente. Diferentemente de outras atrocidades produzidas pela ditadura, os relatos desse período sombrio da história mostram que a perda de várias vidas indígenas se deu justamente por omissão de quem deveria protegê-los: os agentes públicos da Funai.

Eles seriam os causadores da disseminação de doenças graves que dizimaram dezenas de integrantes dessas duas etnias. No início dos anos 70, surtos de disenteria, sarna, gripe e problemas de visão acometeram boa parte da tribo Parakanãs. Em um dos documentos, consta que dezessete índios acabaram mortos por serem contaminados por algumas doenças relacionadas. Dois também ficaram cegos e quatro tiveram os olhos afetados.

VIOLÊNCIA Com o objetivo de tomar terras indígenas para projetos de infra-estrutura, muitas vidas foram ceifadas
VIOLÊNCIA Com o objetivo de tomar terras indígenas para projetos de infra-estrutura, muitas vidas foram ceifadas

Devido às inúmeras denúncias seguidas de pedidos de socorro de nativos da região e de médicos que atenderam a tribo, a Funai decidiu investigar a origem do problema. O responsável por produzir um relatório foi o coronel Antônio Augusto Nogueira, chefe da 2ª Delegacia Regional da Funai, no Pará. O militar tentou minimizar as denúncias, removendo dos seus postos os servidores que haviam contado sobre as doenças que levaram à morte os índios.

Em depoimento ao coronel Nogueira, o médico-chefe da equipe volante de saúde da DR, Antônio Fernandes Medeiros, corroborou informações do sertanista da fundação Antônio Cotrim Soares. No relatório, o especialista atestou que o contágio dos índios ocorreu pelos agentes da Funai. No entanto, na mesma página, ele não descartava que a contaminação também pudesse ocorrer pelo contato que os índios tiveram com funcionários da construtora Mendes Júnior. Cotrim, responsável por promover a paz entre a tribo e os fazendeiros da região, fez a seguinte declaração. “Estou cansado de ser um coveiro de índios… Não pretendo contribuir para o enriquecimento de grupos econômicos à custa da extinção de culturas primitivas.”

O documento que o coronel Nogueira encaminhou em 22 de fevereiro de 1972 ao coordenador das operações na Transamazônica, general Ismarth de Araújo Oliveira, insinuava que os depoimentos de Medeiros e Cotrim sobre as mortes decorrentes de doenças provocadas pelo contágio entre os Parakanãs eram duvidosos.

Ele classificou como “exagerado” o número de índios mortos por algum tipo de doença: “Quanto ao citado número de índios mortos entre os Parakanãs por doenças, é exagerado, pois as informações do sertanista João Carvalho e do dr. Medeiros, médico da 2ª DR, fazem referência a dezessete falecidos. Quanto à cegueira, apenas dois estão com a visão perdida e quatro tiveram os olhos afetados”. Além disso, Nogueira tentou manchar a reputação adquirida por Cotrim perante o povo indígena e as autoridades da Funai na época. Ele afirmou que o sertanista era “pouco afeito às normas de disciplina e hierarquia funcional”.

MUDANÇA Guarda indígena Nacional, sob o comando da Funai. À dir. militares observam tribo Waimiri Atroari: 2 mil mortos
MUDANÇA Guarda indígena Nacional, sob o comando da Funai. Militares observam tribo Waimiri Atroari: 2 mil mortos

Denúncia

Os documentos indicam que, no início da década de 70, houve um grande surto de doenças em área de índios da tribo Suruí Paiter, em Rondônia. Em visita à região, o etnólogo francês Jean Chiappino constatou a ausência de cuidados de saúde, pela Funai, o que provocou a morte de 200 nativos por problemas de saúde.

Na ocasião, o relatório foi duramente atacado pelo governo militar, segundo Rubens Valente. Os registros oficiais da Funai na época confirmam o surto e as mortes, mas não trazem maiores dados sobre o número e a amplitude do problema. Mais de 40 anos depois, documentos produzidos por missionários do SIL (Summers Institute of Linguistics), uma ONG evangélica norte-americana, confirmam pelo menos 65 óbitos presenciados por um casal de missionários, Willem e Carolyn Bontkes. Os relatórios falam em “centenas” de suruí mortos em um período em que o casal não estava na região. Depois, os papéis vão descrevendo dia a dia o que aconteceu.

Em depoimento, um sertanista declarou: “Estou cansado de ser um coveiro de índios. Não pretendo contribuir para o enriquecimento de grupos econômicos à custa da extinção de culturas primitivas”

A Funai surgiu justamente em meio a denúncias de irregularidades cometidas por servidores da Serviço de Proteção ao Índio (SPI). No final dos anos 60, uma criança indígena, Rosa, 11, foi levada de uma tribo, em Mato Grosso, para servir de escrava da mulher de um servidor do SPI. Não foi o único caso de escravidão de índios, submetidos a essa situação por funcionários do governo federal. Na primeira década da ditadura, índios – adultos e crianças – eram vendidos por funcionários públicos que tinham como missão protegê-los.

Depois de descoberto o crime, aproximadamente 130 funcionários foram apontados como responsáveis pelos delitos, mas ninguém foi punido. A única consequência prática foi a decisão de acabar com o SPI e criar em seu lugar a Funai. O órgão disse à ISTOÉ que o governo “já reconheceu esse vergonhoso capítulo da história do país” com o relatório da Comissão da Verdade e citou um pedido oficial de perdão relacionado à tribo Aikewara, na região do Araguaia, depois de uma briga na Justiça.



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