Todo início de ano, Marina Colasanti planeja o que fará nos próximos meses: conto, microconto, poesia para criança ou para adulto, tradução? A lista de 2017 era grande – pudera, é ano de festa – e o resultado começa a aparecer nas livrarias. Pela Global, acaba de sair Quando a Primavera Chegar e, para outubro, está previsto A Cidade dos Cinco Ciprestes. Uma reedição de Eu Sozinha, a estreia da autora, também está no prelo. Pela FTD, foi lançada uma nova edição – agora com ilustrações de Guazzelli, e não dela – de Um Amigo Para Sempre, e pela Brinque-Book, Tudo Tem Princípio e Fim. Todos, com exceção do livro de estreia, são para jovens leitores – mas não só. E a tradução de Imagine, letra de John Lennon transformada em livro pra criança lançado pela V&R, também é dela.

Vem mais por aí: em 2018, saem, pela Record, Mais Longa Vida, de poemas adultos, e o infantil Classificados e Nem Tanto 2.

Tudo isso para celebrar os 80 anos da autora, filha de italianos que nasceu na Eritreia em 26 de setembro de 1937, se mudou para a Líbia, passou a infância na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, emigrou, aos 10, para o Rio (para o Parque Lage, onde vivia uma tia), voltou à Itália e de novo ao Brasil, morou na França e vive no Rio. Cada passo, cada olhar, cada mudança… tudo ficou marcado e foi importante na formação da autora, que é dona de um dos mais consistentes projetos literários do País. E premiados – Marina acha “improvável”, mas ela, que acaba de ganhar o Prêmio Ibero-americano SM, pode levar o Hans Christian Andersen, o principal da literatura infantojuvenil mundial, em 2018.

Marina Colasanti está em São Paulo para um encontro na Livraria Martins Fontes Paulista neste sábado, 30, às 15h (senhas distribuídas às 13 h). Depois, ela autografa seus livros. Às vésperas do aniversário, ela falou ao jornal “O Estado de S. Paulo”.

80 anos em movimento. Tem sido uma boa vida?

Uma vida interessante, que nem sempre foi boa.

Por causa da guerra?

A guerra não foi tão difícil porque eu era criança. Depois, vieram os problemas na juventude: meus pais se separaram, a doença de minha mãe, a vida ficou um pouco puída, seu tecido ficou esgarçado. Um sentimento de solidão muito forte.

Como uma criança vive numa guerra. Tem consciência? O que ficou dessa experiência?

É treinada para ter consciência para que ela se proteja. Mas a infância tem uma força de vida tão grande que ela sobrevive. A gente brinca como se não estivesse na guerra, se diverte. Lembro de uma vez que ouvimos um barulho numa casa no meio de um parque enorme. Nossos pais tinham ido para cidade e saímos para caçar o inimigo – eu com seis anos, meu irmão com sete, minha prima com nove e a empregada quase da mesma idade da gente. Saímos armados de facões e rolo de fazer macarrão, e, em fila indiana, andamos em volta da casa para ver se tinha inimigo. Criança é criança. Por sorte, porque se não as crianças brasileiras das favelas não poderiam ser crianças e as crianças sírias também não. Perde-se a parte da proteção, mas não se perde a curiosidade, a capacidade de aprender e o desejo de viver.

Por que acha que é escritora?

Sempre desejei ser artista e a escrita como eu faço, a que me interessa, que não é só contar uma história, é a arte da palavra. Li muito na infância, na guerra, e ficou essa impossibilidade de viver sem livro. Não sei viver sem ler e, possivelmente, não sei viver sem escrever porque tenho diário desde os 9 anos. A minha relação com a vida é através da escrita.

As vivências na África, Itália e aqui contribuíram para que escrevesse histórias? Ou a herança de uma família artística foi decisiva?

Tudo foi importante. As vivências da infância são um pote enorme onde a gente enfia a mão toda vez que vai buscar uma sensação. Como é o sol na pele? Pum, lá vai a mão no pote procurar como eu senti a primeira vez que tive consciência do sol na pele. O tempo inteiro é isso. Os livros que li, a família artista, eu debruçada na prancheta do meu tio cenógrafo e figurinista. Tudo se funde.

Há várias maneiras de contar histórias para crianças e adolescentes e muitos seguem o caminho mais próximo do didático, pensando talvez nas vendas. O que deve ser essa literatura?

O que quero é emocionar, fazer pensar, deixar coisas em aberto, surpreender. Não quero dar o que querem porque isso não vai acrescentar nada: vai ser o que já conhecem. Quero dar literatura, ou seja, a palavra em vários níveis, contos com várias possibilidades de interpretação.

A senhora já disse que o inconsciente é seu ghost writer. Como as histórias surgem?

É muito raro que um conto me apareça. Eu trabalho por projetos e faço todo o trabalho interior de leituras que chamem o inconsciente. Como quando você faz aquela mesa com pires para chamar as entidades do além, eu tento botar o meu pensamento, o meu desejo, em contato com o inconsciente e a partir de uma coisa qualquer que me emocionou, que eu guardei, eu começo a babar em cima – feito a cobra que baba o passarinho para poder engolir, eu babo em cima até que a história começa a acontecer e eu vou atrás dela. É assim.

Do que sente saudade?

De um Brasil mais suave, da Ipanema que eu vivi, da praia em que nadei. Claro, a gente sente saudade das pessoas, mas isso é da ordem natural das coisas. Não sou saudosista da juventude. Não me queixo: acho minha idade ótima. Não tenho medo da morte, não quero viver muito. A cara era mais bonita antes, mas está bem assim. Ando viajando como uma louca, trabalhando como sempre, ou até mais. As filhas estão criadas. Quando temos filho pequeno ou desestabilizado, não podemos morrer. Eu posso, sem medo.

São tempos difíceis, de muito extremismo, muita raiva. A literatura pode ajudar a melhorar essa situação, as pessoas, o mundo?

Shakespeare escreveu em 1500. Dante escreveu a Divina Comédia antes. E Homero, antes ainda. E nada mudou. Não acredito que a literatura mude a ordem das coisas. Ela muda os indivíduos – alimenta os indivíduos, dialoga com eles e os ajuda a dialogarem consigo mesmo. E indivíduos se juntam e fazem um partido, se juntam e impõem uma ditadura, fazem uma guerra. Há uma territorialidade e uma prepotência no ser humano, e a sede de poder, o egoísmo, a ferocidade e o sentimento de territorialidade conduzem o mundo mais do que sentimentos profundos individuais – os mais pessoais, íntimos, de ternura, de afeto, de projetos, de desejos, de irmandade e caridade. Eles acabam sendo sempre vencidos na história da humanidade.

É otimista?

Não, e nem pessimista. Leio a história e tiro algumas parcas conclusões. Não tenho a menor ideia do que vai acontecer amanhã. Trump não quer acabar com 26 milhões de pessoas? Não posso ser otimista. Não tenho dados em que apoiar um otimismo que não sinto em mim. Também não sou pessimista. Sou um ponto de interrogação (risos).

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.