Sabe quando algo faz ver outra densidade onde você nem suspeitava ser possível? Pois é. Guarde-me, a nova criação de Márcia Milhazes, que o Sesc Bom Retiro apresenta até este domingo, 14, nos faz rever a habitual associação barroco-excesso. Nos ensina que o excesso pode estar no que emudece e não no que tagarela exageradamente. E nos ajuda a enfrentar os tempos polifônicos em que vivemos, com tantas vozes em simultaneidade embaralhando a comunicação.

Guarde-me se organiza em torno de um silêncio que se adensa a ponto de não mais ser suportável. Se materializa na dança de Ana Amélia Vianna, que trabalha há 17 anos com Márcia Milhazes e, nesta obra, banha cada um de seus movimentos com uma maturidade tão natural como o seu respirar. Seu corpo se dobra como quem escava para dentro para se enovelar com o de Domênico Salvatore.

Domênico precisa que as mãos tateiem o seu contorno. Elas se encontram e se afastam, espiralam movimentos como se respirassem ou soprassem para fora delas algo que urge ganhar a exterioridade porque precisa ser dito, mas são mãos que se abrem para não revelar, e sim para convocar para um dentro. Mãos e braços abrem a possibilidade para que o corpo inteiro ganhe volume e possa fazer de Ana Amélia um pêndulo, com pernas ponteiros que rasgam o espaço com retas que estancam as sinuosidades que se espiralam para dentro de si mesmas.

O casaquinho, que a todo momento volta a ficar dependurado em Ana Amélia, insiste em ser um “quase” que parece não caber em nenhum tipo de ajustamento. Ele constitui a metáfora do que está lá: compõe e descompõe como se não pudesse delimitar o corpo de Ana Amélia (porque, na verdade, não é mais um corpo, mas um silêncio que vai ficando cada vez mais pesado) e tampouco o de Domenico.

Porque, à medida que o trabalho vai avançando, percebemos que Ana Amélia é o “dentro” de Domênico que se exterioriza e que, mesmo quando os dois se dão as mãos, não juntam danças nem direções.

Domênico, embora tenha apenas 8 meses de convívio profissional com Márcia Milhazes, tensiona com exatidão as golfadas de movimento que vai produzindo.

São muitos os silêncios para fazer os sentimentos assomarem. Silêncios pespontados por gestos imprevistos, que parecem soluços ritmados. Houvesse a possibilidade de uma identificação gráfica para Guarde-me, ela seria a do símbolo matemático do infinito, o 8 deitado. Ele junta o que se ouve com o que se vê nos seus dois anéis, que se entrelaçam como se não fossem movimentos de dança e sons musicais, e sim aspectos de um mesmo entendimento de mundo.

A música que nasce do maestro Eduardo Antonello (que também toca cravo), Roger Lagr (violino barroco e vieille de roda) e Pedro Hausselmann (viola da gamba, flautas e gaita de fole) está em cena como que dizendo que o que vai começar já se iniciou bem antes. Música e dança, uma atestando ser a distensão da outra, pois ambas realizam a mesma combinação do que está partiturado com o que é agregado como improvisação, mas uma improvisação que se dá a ver na mesma natureza estruturante do que compõe a partitura. Música e dança na repetição que confronta os afetos que as impulsionam.

Diferenciando-se de coreografias anteriores, desta vez, o palco não está emoldurado por nenhum objeto cenográfico, em uma cena que cabe a Ana Amélia e Domênico dar forma. Vale observar que o que vai ocupar o palco tem a ver também com o sopro e com o vento que o movimento faz para existir. No começo, Domênico irrompe como um vento, correndo, impulsionado por uma força que, nesse momento, ainda não se sabe que vem dele mesmo. E no final, Ana Amélia atravessa o palco correndo, e seu vento o derruba. O dentro e o fora se juntam para que o silêncio do qual tentamos sempre fugir, se imponha.

Neste Guarde-me, Márcia Milhazes assenta um domínio de artífice sobre o seu fazer coreográfico, reunindo sofisticação e requinte com um rigor que explode em todas as dimensões.

GUARDE-ME

Sesc Bom Retiro. Alameda Nothmann, 185. Dom. (14), às 18h.

Ingressos: R$ 6/ R$ 12.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.