Até agora René Magritte (1898-1967) foi um pintor maior. Com a abordagem inédita de sua obra em A Traição das Imagens, surpreendente exposição inaugurada esta semana no Centro Pompidou (até 23 de janeiro), aprendemos que ele é também um filósofo maior da arte moderna. Mais de uma centena de quadros e documentos dispostos em cinco salas temáticas, por ordem analógica e não cronológica, revelam a sua ambição de expressar pensamentos da forma mais fina possível. Racionais e rigorosos – jamais fortuitos, aleatórios ou arbitrários – os trabalhos de Magritte são como fórmulas matemáticas com as suas soluções já embutidas nas imagens.

Depois de mostrar “outros” Munch, Matisse, Duchamp e Klee, o Pompidou prossegue a sua habitual desconstrução das ideias feitas sobre artistas e suas obras. O que reafirma esta instituição como uma das únicas do mundo, talvez, que hoje exerce a história e a crítica da arte como se deve: longe do consenso e próxima da dúvida.

Parafraseando o mestre, “esta exposição Magritte não é uma exposição Magritte”. Ou seja, o que parecia surrealista – como fizeram acreditar as mostras do MoMA em Nova York, da Fundação Menil de Houston, do Art Institute de Chicago e tantas outras (não faltam mostras sobre ele no mundo) – nem é tão surrealista assim. Se Breton, odioso, ordenou que a mulher de Magritte tirasse o crucifixo do pescoço provocando a ruptura entre os dois, foi talvez porque logo viu que este não era seu colega de ismo.

De fato, a obra de René Magritte é muito mais complexa do que se estivesse apenas sob as forças psíquicas irracionais do automatismo, sonho e inconsciente. Tão plena de ideias que hoje é possível estabelecer relações entre a sua pintura e a arte conceitual de Joseph Kosuth que, inclusive, concebeu uma obra monumental em sua homenagem.

Um mural de signos e letras em relevo de cerca de 30 metros, que se encontra à entrada da exposição. Assim, o curador Didier Ottinger deu preferência a obras tardias, menos conhecidas e prezadas pelos especialistas, porém mais apreciadas pelos artistas contemporâneos. “Foi preciso que eu descobrisse por mim mesmo que o pensamento é a única luz”, escreveu Magritte em 1953.

O fato é que a sua luz só podia brilhar quando criava perturbação e conseguia acusar os enganos da arte e os lugares-comuns da linguagem. A “traição” é justamente a fascinação do artista pela simulação, a que conhecemos por exemplo sob o nome de Ceci n’est pas une pipe que segundo ele “não é um cachimbo (pipe) pois ninguém pode fumá-lo”. A “imagem trai”, pois enquanto pensamos que ela é o espelho do objeto, é apenas a indicação dele, a sua ideia, o simulacro. Até a imitação do mundo real não escapa, ele a desconstrói completamente.

Cada trabalho de Magritte é um ardil para os olhos e uma ironia para o cérebro. Nenhum deles é ou significa o que parece ser ou significar. Nem à primeira vista, nem depois. Na verdade, no terreno movediço e incerto onde se instalam as ilusões, em meio às desconexões e desacertos, é o espectador que inventa as suas telas.

O percurso é precedido por um retrato do artista enquanto filósofo, lembrando que este foi um leitor de Heidegger, Merleau-Ponty e Foucault, com quem manteve correspondência, assim como com Alphonse de Waelhens e Chaim Perelman, nos anos 1950. À paixão filosófica junta-se autobiografia e humor negro.

Magritte não é um poeta, não cria enigmas, não fabrica onirismos, não brinca com o fantástico, não flerta com o simbolismo, os seus motivos são cruéis: objetos do cotidiano, guarda-chuvas, cortinas, sombras, palavras, corpos em pedaços, chamas. A mostra os dispõe dentro de uma genealogia erudita, longe do surrealismo e, algumas vezes sutilmente, contra ele.

Saímos pensando que uma Bienal inteira de boas intenções e ideologias, sem arte, certamente não valerá o prazer de uma só tela exposta aqui. Apesar e talvez por causa do seu lado sombrio, quanto mais entramos na sua arte do raciocínio com método, Magritte – ele – nos faz rir. E com o riso iluminador e liberatório da ironia socrática.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.