O silêncio de um artista, tanto quanto seu falatório, diz muito. Marisa Monte e Paulinho da Viola passaram a semana anterior às apresentações previstas entre sexta-feira (5) e domingo (7), no Citibank Hall, dizendo não aos pedidos de entrevistas. Nada de papo, nada de fotos. Não divulgaram seus repertórios nem deram detalhes de como seria o encontro entre a voz que ilumina o samba de uma velha guarda portelense preciosa desde o álbum Tudo Azul, de 1999, e um dos últimos imortais criados neste mesmo berço, Paulinho da Viola.

Marisa e Paulinho não falaram porque não tinham o que falar. Sem um álbum novo ou um projeto de turnê arquitetado, era apenas se juntarem, ela atendendo ao convite dele. Simples assim. Por menor que fosse o tempo que tivessem de ensaio ou o grau de novidades que poderiam justificá-lo, o nível de riscos artísticos era baixíssimo. Os dois se frequentam há anos, sob holofotes ou não, e cantam no mesmo idioma sobre uma base sólida. A noite foi prazerosa e delicada em falas e cantos, de memórias e uma ou outra aventura, como Paulinho tocando cavaquinho e cantando backings para Marisa no rock Comida, dos Titãs.

Houve reverências a Candeia, Argemiro e Monarco, delicadezas ao próprio Paulinho dispensadas com cuidado por Marisa e a afirmação de vidas artísticas que dizem não à sanha por novidades, de críticos, mas também de boa parte de seus públicos, para se reconstruir no passado. Uma demonstração de força na era da perenidade que é poética, valiosa e resistente, mas que os acomoda no canto mais seguro da alma. Assim, tudo será sempre poético, valioso, resistente e previsível.

Marisa Monte canta e, imediatamente, seu canto confere um lustre em certa melodia que nem tínhamos percebido ser tão bela. Sua voz lustra melodias ofuscadas como verniz, como fez com Paulinho no bloco com Dizem Que o Amor (de Argemiro Patrocínio e Francisco Santana), Quantas Lágrimas (de Manacéa) e a estonteante Preciso me Encontrar (de Candeia). Mesmo Carinhoso, cantada no ano em que completa um século de sua criação por Pixinguinha, ganha brilho. Esse é seu maior poder e seu pior conforto. O registro emocional de Marisa Monte é o mesmo para todos. Não há maiores nem menores mergulhos além da linha amarela e sua sintonia trabalha em uma frequência única, capaz de deixar toda a velha guarda portelense transmitir a mesma intensidade que uma canção dos Tribalistas. Não lhe falta emoção, mas seu filtro a emite de forma linear.

A força de Paulinho da Viola, construída em anos de uma produção acima da normalidade, lhe garante vida após a vida. O show começa com ele sozinho, e logo depois acompanhado de seu conjunto, cantando um setlist que soa como uma demonstração de força criativa inoxidável, incluindo Tudo se Transformou (de 1970), Coisas do Mundo (de 1978), Pecado Capital (de 1975), Onde a Dor Não Tem Razão (com Elton Medeiros, de 1981) e Roendo as Unhas (de 1973). Sinal Fechado, bela na divisão de vozes com Marisa, ele mostrou em 1969, quando ganhou o Festival Internacional da Canção, ou o “festival da depressão”, o primeiro no pós-AI-5. Foi sua maior ameaça de trilhar rumos mais distantes dos formatos tradicionais. Não Quero Você Assim, de menor impacto, tem história curiosa levantada por Marisa. Paulinho a fez em 1969 para ser gravada por Roberto Carlos, mas sua timidez o impossibilitou de mostrá-la até hoje. Se estivesse na plateia, Roberto se emocionaria.

Há algo que parece contradizer a frase que Paulinho diz no documentário Meu Tempo É Hoje, de 2003. “O meu tempo é hoje. Eu não vivo no passado, o passado vive em mim.” Seu samba vive no passado e seu passado vive em seu samba, algo que não o desmerece em nenhum instante. Quando criou todos eles, Paulinho não fez músicas com datas de validade. Ele e seus sambas já estavam no futuro.

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