Destino é destino, e se o destino do Brasil é trágico e tocado com incompetência pela chamada classe política, é soberano e generoso no campo artístico. Olhe-se, por exemplo, para algo que melhora a cada dia nesse País — a música popular. Mas destino é destino, e também nela, na nossa música, há deslizes éticos e curvas morais de alguns de seus grandes nomes (felizmente, de poucos deles).

Destino é destino, e quis o destino que um boêmio sambista das madrugadas do Rio de Janeiro se encontrasse com um pianista de paletó e gravata e formação clássica das madrugadas de São Paulo. O encontro se deu no início dos anos 1930. Os nomes dos personagens, imortais, são Noel Rosa, o “poeta da Vila Isabel”, e Oswaldo Gogliano, o “Vadico”. Do talento de ambos, combinado, saíram canções como “Feitio de Oração”, “Feitiço da Vila”, “Conversa de Botequim”. A história dos dois compositores está muito bem contada no livro que desembarca essa semana nas livrarias, Pra que mentir? Vadico, Noel Rosa e o Samba, de autoria de Gonçalo Júnior (que já biografou o maravilhoso e triste Assis Valente, que se suicidou tomando guaraná com formicida).

O livro é indispensável na estante daqueles que estudam a música popular brasileira. O autor quis construir uma biografia de Vadico, mas o “fantasma” de Noel atravessa toda a obra. E nem poderia ser diferente. Como falar de algum parceiro de Noel Rosa, ainda que seja sobre o melhor e principal deles, sem falar do próprio Noel? Como falar de Vadico sem remeter a Noel, um dos cinco mais criativos compositores populares brasileiros? (Os outros quatro são Ismael Silva, Nelson Cavaquinho, Cartola e Chico Buarque). Impossível. E é desse cruzamento que vem, na excelente obra recém-lançada, um fato brasileiríssimo — e pouco edificante para o “poeta da Vila”.

Na década de 1950, Vadico (dois infartos no peito) retorna de uma jornada de catorze anos nos EUA, onde brilhou acompanhando em seu piano a coreógrafa e bailarina Katherine Durham, uma das pioneiras na luta pelos direitos civis dos negros. De volta então ao Brasil, Vadico descobre que muitas de suas músicas eram executadas trazendo somente o nome de Noel como autor. Pois é, o romântico Noel (até o romântico Noel!) teve o seu lado Lava Jato: teria registrado, segundo o jornalista baiano Gonçalo Júnior, alguns dos sambas apenas em seu nome. Isso não tira o mérito de Noel como compositor. É lamentavel, no entanto, que tenha errado o passo nessa malandragem. Ele, logo ele, que escreveu: “malandro é palavra derrotista / que só serve para tirar todo o valor do sambista / proponho ao povo civilizado / não te chamar de malandro / mas sim de rapaz folgado”.


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