Existe um esporte que é comum às crianças. Nessa modalidade, não são exigidas a resistência da ginástica, a concentração do tiro ao alvo, nem a agilidade do boxe. “Toda criança adora correr e elas fazem isso muito bem”, aponta a atriz Rita Batata, que estreia Kiwi neste sábado, dia 1.º, texto do canadense Daniel Danis dirigido por Lucianno Mazza.

A montagem invoca a trajetória da menina com nome de fruta, que é despejada com a família por morar em uma área na qual será construído um centro olímpico. “Trata-se de uma situação comum em muitos lugares do mundo”, explica Mazza. “No Brasil, tivemos casos parecidos durante a construção do estádio em Itaquera e neste ano durante a Olimpíada no Rio. A gente costuma pensar no esporte como ferramenta de inclusão, mas, nesses casos, os eventos esportivos acabam promovendo ainda mais desigualdade.”

Relegada a morar nas ruas, Kiwi conhece Lichia, um garoto vivido por Lucas Lentini. Ambos mergulham em uma relação de apoio e proteção, diante dos perigos da cidade. “Eles cometem pequenos crimes para sobreviver e se sustentarem”, diz Rita. E quando a noite cai, os meninos se alojam em abrigos subterrâneos, muito comuns no Leste Europeu. “São estruturas ligadas ao esgoto e que se tornam a única chance de moradia para muitas pessoas”, conta ainda o diretor.

Na encenação de Mazza, esportes e seus gestos particulares guiaram a movimentação dos atores. “Nós queríamos relacionar a luta deles nas ruas com o desafio trazido por essas competições.”

Durante o processo, Rita lembra, restou apenas o esporte primordial das crianças: a corrida. Eles correm o tempo todo, seja para cometer crimes, seja para fugir da polícia”, conta. “Minha personagem brinca que um dia vai correr tanto que vai conquistar uma medalha de ouro.”

Além de mencionar uma prática comum em eventos esportivos, Mazza aponta para as características da dramaturgia de Danis. Em sua busca por dramaturgias contemporâneas, o diretor se deparou com um texto escrito em francês que trazia certa ambiguidade narrativa ao mesclar o drama e o épico. “Parte da peça tem seus acontecimentos narrados, desde a desapropriação da família de Kiwi, até suas andanças com Lichia. Por outro lado, os atores também precisam reagir no palco.”

A atriz ressalta que a relação no palco não pretende inspirar uma movimentação natural, relacionada com as ações de cada cena. “Pensamos que são jogos internos entre os personagens com o objetivo de suscitar a força desses momentos dramáticos e dar apoio ao períodos narrativos.”

O tempo cronológico da peça captura a vida de Kiwi dos 14 aos 18 anos. Sua crueza ao olhar para a existência vem de maneira quase congênita. “A personagem já era órfã antes de ir morar com os tios. A compreensão do termo família não incitava qualquer proteção. Como não havia em quem se apoiar, sua relação com Lichia é o único ponto de apoio”, explica Rita Batata.

A dupla compartilha então o amadurecimento do garoto e o desenvolvimento da mulher. “É na cadeia que ela recebe o nome de Kiwi”, conta Rita. “As crianças do reformatório se reúnem para fugir e juntas formam um clã que recebe nomes de frutas e legumes”, recorda.

Do lado de fora, a vida seguirá com a mesma rotina, embora outras opções surjam quando a dupla alcança a maioridade. “Eles passam a frequentar uma casa de prostituição e usam drogas. São retratos de uma anestesia social”, explica Mazza.

Rita acrescenta que a interpretação precisa dar conta de tanta de angústia e dor. “O comum é que eles estejam inflamados por tanto abandono. A necessidade de permanecer alerta faz com que eles precisem ser violentos”, enfatiza a atriz.

Mas nada disso vai superar a beleza de todas as manhãs, quando os jovens deixam o escuro dos abrigos, tão logo o sol nasça. “A dupla ainda vai ter tempo para invadir a piscina pública e tomar um banho”, revela o diretor. “E correr, correr muito”, acrescenta Rita Batata.

KIWI

Teatro Augusta. Rua Augusta, 943. Tel.: 3151-4141. Sáb., 21h30; dom., 19h. R$ 30 / R$ 15. Estreia 1º/10. Até 27/11.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.