Jorge Schwartz acaba de lançar o livro “Borges Babilônico – uma Enciclopédia” (Companhia das Letras, 580 páginas). O volume contém mil verbetes redigidos por alguns entre os maiores especialistas na obra do grande autor argentino, hoje cultuado como o mito máximo da literatura do século latino-americana. Schwartz é crítico literário, ensaísta, pesquisador e professor de Literatura da Universidade de São Paulo. Com o livro, quis tanto mostrar o lado popular de Borges, como aprofundar nas fontes de seu saber. Acima de tudo, é um livro que materializa a ideia de que o paraíso está sempre perto do leitor – e nada melhor do que mergulhar num mundo ideal em companhia de Borges.

Nesta entrevista, Schwartz conta como conheceu e acompanhou Borges em sua viagem a São Paulo, em 1984, e o que significa ser “borgiano”. Também justifica a enorme popularidade póstuma – e, pelo jeito, eterna – de Borges.[posts-relacionados]

Por que você escolheu elaborar um dicionário não-analítico? O volume é absolutamente objetivo, sem intervenções conceituais… É uma maneira acessível de entrar no mundo de Borges?

Acho que a forma mais acessível de um dicionário sobre Borges é mostrar clareza e informação pesquisada e precisa. Sigo o padrão do meu mestre Antonio Candido, para quem a clareza foi sempre uma arte.

Veja, os mais de 60 verbetistas foram aconselhados a não entrar em interpretações. Um dicionário analítico seria algo semelhante à Britannica, com longuíssimos ensaios assinados, ou eu teria de lidar com o subjetivismo dos autores em mais de mil verbetes. Existem milhares de artigos sobre Borges, em todo tipo de publicação, e revistas especializadas, a melhor delas Variaciones Borges. No final do BB há uma extensa bibliografia justamente para induzir os leitores que desejarem a fazer pesquisas de caráter interpretativo. O projeto vai na contramão, por exemplo, da atual Gran enciclopedia cervantina, dirigida por Carlos Alvar, e que se encontra no 9º volume, faltando vários ainda. Não foi essa a intenção deste projeto.

Há verbetes igualmente inesperados no dicionário. É possível descobrir um novo Borges consultando-os? Que exemplos você daria?

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Não sei se é possível descobrir hoje “um novo Borges”, acho que não. A minha proposta é a de abordagens originais, isso sim. Verbetes como o da “autorrepresentação; representações autobiográficas”, de Alfredo Alonso Estenoz, ou “matemáticas”, de Inés Azar, surpreenderão os leitores. Embora o universo da biblioteca infinita pareça ter se esgotado, surge mais um Borges dentro da Biblioteca Nacional por ele dirigida, quando se descobriu recentemente, e depois de trinta anos, uma quantidade enorme de livros por ele anotados, e doados ao sair da Direção em 1973 (“Biblioteca de Borges (dentro da Biblioteca Nacional”). Não um novo, mas outro Borges encontramos no verbete por ele redigido, sobre si mesmo: “Borges, Jorge Francisco Isidoro Luis”. Apareceu como epílogo à clássica edição das Obras completas de 1974 por ele organizadas. Um verbete planejado para uma suposta Enciclopedia Sudamericana a ser publicada no Chile um século mais tarde, ou seja, em 2074. A visão retrospectiva dele mesmo é admirável, e o verbete traz um erro criativo e proposital: “Borges, José Francisco Isidoro Luis”.

Borges virou a panaceia universal para muitos intelectuais. Como você vê essa disseminação da arte borgiana – para não falar de vulgarização (o Zahir, de Paulo Coelho, é inspirado em Borges, que se tornou o escritor favorito do autor brasileiro).

Sim, Borges virou panaceia universal. Mas, ao mesmo tempo, inspirou toda a geração do boom latino-americano dos anos 1960 (García Márquez, Vargas Llosa, Carlos Fuentes e escritores como Umberto Eco, Michel Foucault etc.), assim como teve a admiração incondicional de grandes escritores argentinos que o sucederam como Ricardo Piglia ou Juan José Saer. Clássicos como Cervantes, Kafka, Fellini também viraram panaceia. Não dizemos hoje “quixotesco”, “kafkiano” ou “felliniano”, sem precisar conhecê-los? O que dizer então de Jesus Cristo como panaceia universal?

Como você arregimentou os colaboradores? Há alguns nomes célebres, como os de Alberto Manguel e Ricardo Piglia entre eles…

Sem o sentido organizativo de Maria Carolina de Araujo, teria sido impossível administrar este corpus e fluxo de verbetes ao longo de duas décadas. Em meu caso, é o resultado de mais de quarenta anos de janela acadêmica. Na USP, os alunos de graduação com bolsas de iniciação científica do CNPq, sem as quais não teria sido possível desenvolver pesquisas ao longo dos anos. Ser judeu-argentino-paulista me permitiu abrir quase que todas as portas do campo da crítica literária. A passagem pela Universidade Yale nos anos 1970, com a orientação do Emir Rodríguez Monegal, a quem dedico o Borges babilônico, sem dúvida redirecionou minhas leituras de Borges e me ajudou enormemente na agenda com críticos e escritores.

No caso de Ricardo Piglia, fomos bem próximos, e do Alberto Manguel me aproximei por conta deste projeto. Nenhum dos dois, por motivos diferentes, poderia estar excluído.

Sobre Alberto Manguel, um dos jovens leitores de Borges, as simetrias são impressionantes: Manguel é hoje também diretor da Biblioteca Nacional em Buenos Aires, e acaba de receber o prêmio Formentor 2017. Foi este prestigioso prêmio que Borges dividiu com Samuel Beckett e que o lançou internacionalmente em 1961.

Você encontrou Borges em duas ocasiões, em Jerusalém e em São Paulo, quando você esteve bem perto dele. Você poderia contar algum episódio curioso em relação a esse encontro, que não está nos livros?

Sim, em Jerusalém, ele foi saudado por Shmuel Yosef Agnon, quando este já era Prêmio Nobel. A figura quase profética dos dois fica indelével. O auditório enorme da Universidade Hebraica de Jerusalém estava lotado, e Borges recitou inúmeras estrofes do Martín Fierro em espanhol. Muitas mesmo. Não imagino o que foi que o público presente entendeu. Pessoalmente, fiquei impressionadíssimo com a memória…

Em São Paulo, 1984, a Folha de S. Paulo, que patrocinou a vinda, decidiu, por uma questão de falta de espaço, que Borges se apresentaria na enorme garagem. A apresentação foi literalmente surrealista, pois tudo o que foi dito, com a interferência dos caminhões, era inaudível e indecifrável. Em todo caso, saiu todo mundo enfeitiçado pela figura quase messiânica naquele momento, Borges cego e aos 85 anos de idade.

Uma curiosidade menor era que no Hotel Maksoud, onde se hospedou, ele gostava de tomar o café da manhã no salão da entrada, com María Kodama. Sempre elegante, de terno e gravata, ele poderia tomar o café no quarto. Borges adorava ter interlocutores, e eu não perdi a chance de chamar amigos para vê-lo tomando o café, mesmo que não conseguissem chegar perto dele para conversar. Essa, eles me devem!


O encontro de 1984 foi um momento proverbial, não muito mencionado. Você mesmo documentou esse encontro. O que falta ser divulgado sobre esse encontro, internacionalmente? (Uma coisa de que me lembro é que, na coletiva do Maksoud, percebi que Borges de alguma forma enxergava, porque ele dirigia o olhar sempre a María Kodama).

Fico emocionado quando você afirma que Borges de alguma forma enxergava e olhava para María Kodama. A cegueira dele era total, a partir dos cinquenta anos de idade. Então, esse olhar é definitivamente o do homem enamorado. É só se deter na magnífica foto que abre o BB, do casal muito descontraído na Sicília. Essa foto foi-me cedida especialmente por María Kodama.

 Você conta que aprendeu muito sobre Borges com o professor Emir Rodríguez Monegal, em Yale. Mas a visão de Monegal é bastante peculiar em relação ao autor, não? Dizem que o próprio Borges não abençoava a visão monegaliana…

Veja, Borges: uma biografia literária, publicada primeiro em inglês e depois em espanhol, é inédita ainda em português. Ao meu ver, a melhor até os dias de hoje. Monegal foi silenciado pela militância acadêmica da esquerda, sem dúvida. Ele navegou pelas águas das altas literaturas, e não as dos estudos culturais. Não acho que os Cultural Studies tenham muito a dizer sobre a literatura de Borges, que se alimenta da própria literatura. O próprio Borges foi rejeitado por toda uma geração dos anos 1960, pela pecha de cosmopolita, por não estar preocupado com uma retórica nacionalista. Isso já vem dos anos 1920. Borges foi resgatado na Argentina pela revista Punto de vista, dirigida por Beatriz Sarlo, quem posteriormente escreveria, primeiro em inglês, Borges: a Writer on the Edge (Borges: un escritor en las orillas).

 O que ainda há para ser descoberto ou estudado em Borges?

Pensar que foi tudo descoberto ou estudado é negar a própria teoria de Borges, a da “poética da leitura”, em que a posteridade modifica o passado literário. Isso vem de T. S. Eliot e está no clássico ensaio “O escritor argentino e a tradição”. É como supor que não há mais nada a dizer sobre os clássicos da literatura.

Você tem pesquisado a vanguarda latino-americana. Quais são seus próximos projetos?

Borges babilônico foi uma maneira de eu continuar também ligado aos movimentos de vanguarda, tantos os europeus, como o expressionismo, assim como o ultraísmo espanhol e o argentino fundado por Borges. Tem muito disso nos verbetes do BB. Penso que a viagem de transversalidade do meu livro Vanguardas latino-americanas de alguma forma esgotaram, ou me esgotaram.

Sobre os meus próximos projetos, pode parecer piada, mas passar vinte anos corrigindo Borges, não Borges propriamente, é chegado o momento de ter tranquilidade para lê-lo. Será uma verdadeira felicidade. Borges viveu afirmando que tinha mais orgulho do que lia do que escrevia.


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