Para falar de Italo, lembro de Caryl.

Caryl Chessman foi o mais famoso presidiário da Penitenciária de San Quentin, no estado americano da Califórnia. No corredor da morte, onde permaneceu por mais de uma década até ser executado em 1960 na octagonal e verde câmara de gás, estudou Direito, foi seu próprio advogado e escreveu livros que até hoje são referência em universidades e cursos jurídicos em todo o mundo. Uma dessas obras se chama “O garoto era um assassino”, e nela Chessman conta a desesperadora travessia de vida de um menino delinquente até a sua morte, quando adulto, nas mãos do Estado. Em uma de suas detenções, o pivete disse ao policial: “você vai sofrer muito quando ficar velho”. O policial lhe respondeu: “está aí uma coisa com a qual você não precisa se preocupar, morrer de velho”. Em outra passagem, familiares do menor admitem que não mais conseguem dar conta de seu péssimo comportamento, não mais conseguem regrá-lo. Quando o garoto-adulto Chessman ouviu no dia 2 de junho de 1960 o barulho das cápsulas de cianureto caindo nos recipientes de gás, anuviou-lhe a mente a antiga fala do policial: “está aí uma coisa com a qual você não precisa se preocupar, morrer de velho”. Chessman tinha apenas 39 anos de idade. Estava consumada a execução. E a profecia de mau agouro.

Para falar de Italo lembrei de Caryl porque, praticamente, nada os distingue na sorte perversa que os acompanhou em vida e na morte. Italo morreu aos 10 anos, baleado por policiais militares na zona sul de São Paulo, na quinta-feira 2, ao resistir à voz de prisão disparando um revólver calibre 38 (pelo menos essa é a versão oficial). Ao seu lado estava J., parceirinho de 11 anos. Ambos furtaram um carro num dos bairros mais nobres de São Paulo, a ponta dos pés de Italo mal conseguindo roçar os pedais.

Houve perseguição, teria havido tiroteio, ele morreu. A sua infância foi pena de morte a conta-gotas, foi vazio na boca da cara, fome na boca do estômago, pancadas na cara, na boca e no estômago dadas por aqueles que tentaram, com a pedagogia à mão de pedra, discipliná-lo – talvez por isso ele fugisse das instituições em que era internado. São muitos os Ítalo que nós fingimos serem invisíveis para deles não cuidar. A mãe do Italo que morreu agora se chama Cíntia Francelino, e ela também passou fome, também levou pancada, já três vezes cumpriu pena por furto. Cíntia continua sobrevivendo na Favela do Piolho, chorando a falta de seu Italo: e como ela gostaria que o filho estivesse ainda dormindo sob efeito de cola nas ruas perto da favela, como sempre fazia, ainda que fosse para depois dar-lhe pancada porque o garoto andava furtando demais e acumulava detenções. E o pai? Pois é, o pai é delinquente, cumpre pena de 18 anos de prisão.

Qual a chance que a vida e a sociedade deram a Italo? Vida e sociedade são expressões abrangentes demais, mas se traduzem, no âmbito da proteção ao menor, na figura do Estado. Qual então o cuidado que o Estado teve com Italo? Nenhum. Quer Italo tenha ou não trocado tiro com a polícia, ele é A Vítima da sociedade. Façamos um corte para a mãe de J., que declarou que “não dá mais conta do filho”. Que triste. É a mesma fala do livro citado no início desse texto e escrito há mais de meio século. Será que alguma autoridade entendeu que essa mãe está pedindo socorro para que seu filho morra de velho e não de tiro, como certamente a mãe de Italo também pediu? Santa ignorância de pergunta, é claro que não. Mede-se a estatura de um Estado pelo modo como trata os velhos, os loucos e os menores transgressores. Nesses três quesitos, o Estado brasileiro é anão.