O sistema de doping no mundo esportivo envolve milhões de dólares em corrupção para comprar inspetores, laboratórios e até mesmo as federações internacionais das mais variadas modalidades. Quem faz o alerta é o canadense Richard McLaren, autor da investigação que revelou o esquema de doping endêmico e sistemático de estado na Rússia, cujo resultado foi o banimento de parte da delegação de Moscou dos Jogos Olímpicos do Rio-2016.

O mundo do esporte vive a sua pior crise em relação a doping, principalmente depois das revelações russas, da pressão pela criação de uma nova entidade internacional diante do roubo de dados da Agência Mundial Antidoping (Wada, na sigla em inglês) e de críticas contra o Comitê Olímpico Internacional (COI).

Em entrevista exclusiva ao jornal O Estado de S.Paulo, o autor do “Relatório McLaren”, encomendado pela Wada, critica abertamente o COI e diz que a entidade conduzida pelo alemão Thomas Bach optou por ignorar o que ele havia denunciado: o estado russo do doping. O investigador também revela que, até o fim do ano, publicará novas revelações ainda mais contundentes.

Durante a realização dos Jogos Olímpicos do Rio, o COI se eximiu de tomar uma decisão de banir a delegação russa, colocando a decisão a cada federação esportiva para que testasse cada um dos atletas, como se o problema fosse apenas individual e não coletivo. Eis os principais trechos da entrevista:

O que o senhor descobriu no que se refere à organização dos testes antidoping?

Informações sobre onde ocorreriam os testes de doping eram dadas com antecipação. Assim, um atleta e seu treinador poderiam se planejar para o evento e deixar de tomar algum produto com tempo suficiente para não serem pegos. Existiam várias formas de lidar também com as amostras. Uma delas era a de comprar os inspetores. Outra forma era a de dar amostras limpas do atleta ou de outra pessoa para que fossem testadas. Também pudemos constatar a existência de intimidações de inspetores que coletavam as amostras.

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O trabalho do senhor se concentrou no laboratório usado pelo COI nos Jogos Olímpicos de Inverno de Sochi. Como funcionava o esquema para escapar do controle de doping naquele evento de 2014?

Atletas tiveram suas amostras coletadas meses antes dos Jogos e esse sangue e urina foram armazenados dentro do laboratório. Eles foram coletados quando estavam limpos. Quando os Jogos de Sochi ocorreram, esses mesmos atletas competiram dopados. Mas, nos testes, suas amostras eram trocadas por amostras que estavam já armazenadas e limpas.

Mesmo assim, o COI optou por não punir a Rússia e apenas lidar com cada caso de atletas. Como avaliou a resposta da entidade?

O Comitê Internacional escolheu olhar para o informe de uma maneira que não era o objetivo da investigação que eu fiz e não foi o que escrevi. O que revelei foi um sistema patrocinado pelo Estado. Existiam pessoas dentro do Estado russo que determinavam como funcionava o esquema e quais atletas seriam limpos. Mas o COI decidiu transformar tudo isso em exame de atletas individuais. Eles também decidiram que iriam colocar a questão sobre a condição do atleta (limpo ou não) para as federações internacionais. Isso não era o assunto do informe.

Portanto, o ponto central da investigação jamais foi alvo de tratamento e interesse do COI?

Correto.

O esquema para camuflar atletas dopados envolvia corrupção?

Já sabemos que o volume de dinheiro envolvido na corrupção é significativo. As vezes é de centenas de milhares de dólares e as vezes chega a ser até mais.

Quanto pode custar a compra de um fiscal para camuflar testes?

Os valores são altíssimos e podem chegar a até US$ 100 mil – cerca de R$ 323 mil.

Até onde chegava o esquema de corrupção?


Para lidar com o problema, a solução era corromper as pessoas. Isso chegou à Federação Internacional de Atletismo (IAAF, na sigla em inglês), sua direção e funcionários do departamento antidoping. O dinheiro era destinado a impedir que o sistema funcionasse. Hoje, isso está sendo lidado com a polícia na França.

Por que essa estrutura foi criada para escapar dos testes?

Desde o desenvolvimento dos passaportes biológicos, a situação mudou. Os atletas que tinham treinadores mais antigos começaram a ser pegos nos testes. Foi então criado um coquetel para permitir que as substâncias ingeridas não deixassem marcas. Isso ocorreu a partir de 2012.

Quais serão os próximos passos da investigação?

Estamos focados agora nos dados sobre os atletas. Vamos concluir primeiro toda a informação sobre os esportes de inverno e depois faremos os de verão. Esperamos ter algo até o fim do ano.

O que significam as revelações do senhor ao mundo dos esportes?

Significam que, quando encontramos informações que sugerem a existência de corrupção ou outro problema, as entidades precisam investigar imediatamente. O esporte precisa ser mais proativo nas investigações. O código da Wada prevê tais poderes e eles precisam ser usados por federações. A Wada já os usa. É por isso que estou nessa posição. Mas entidades nacionais e internacionais também precisam começar a investigar. Isso talvez seja a mensagem mais forte que sairá desse trabalho.

Uma das descobertas do senhor foi a de que os inspetores conseguiram abrir as garrafas lacradas com as amostras e trocar o conteúdo que estava dentro delas. Isso mudou desde que o senhor apresentou esses dados às autoridades?

Contratamos especialistas e eles conseguiram abrir as garrafas. Mas, nesse processo, marcas foram deixadas e por isso descobrimos. A análise forense provou isso. Hoje, provavelmente esse sistema não pode ser feito. Os fabricantes das garrafas nos apresentaram a nova versão do produto e, com as técnicas que temos, não as conseguimos abrir. Hoje, essa porta está fechada. Mas talvez alguém faça de outra maneira.

Nos últimos meses, temos visto vários casos de doping ainda dos Jogos de 2008 e 2012. Quando é que saberemos os resultados de testes antidoping mais específicos sobre os Jogos no Rio em 2016?

Estou convencido de que teremos de esperar muitos anos para saber os reais resultados das provas esportivas disputadas no Rio.

A Fifa insiste que o futebol não tem os mesmos problemas de doping que outras modalidades. Mas o senhor revelou em seu informe que uma série de jogadores de futebol fizeram e ainda fazem parte do esquema de doping na Rússia. O que isso revela sobre o futebol?


Temos apenas 11 casos registrados, o que é algo ainda limitado. Um deles é até mesmo relacionado a um jogador estrangeiro. Mas, por enquanto, temos de aprofundar nossas descobertas para entender o que isso significa e como ocorre. Isso também será analisado.


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