Na surdina, deputados e senadores orquestraram por pelo menos seis meses a indecente e casuística tentativa de anistiar os crimes pretéritos de caixa dois eleitoral cometidos por eles próprios. O alarme interno ecoou em março, a partir da divulgação da chamada lista da propina da Odebrecht. Ali, a trama começava a ser ardilosamente urdida nos bastidores do Congresso. O golpe derradeiro seria aplicado na última semana, enquanto as atenções do País estavam voltadas para as eleições municipais e para a participação do presidente Michel Temer na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), em Nova York. Por muito pouco, a manobra não teve sucesso. Mas o que era para ser uma noite de poucas surpresas deu lugar a outro emblemático capítulo das histórias do submundo do Congresso Nacional, na última segunda-feira 19.

O TIMONEIRO: O deputado Beto Mansur comandou a sessão que votaria a proposta
O TIMONEIRO: O deputado Beto Mansur comandou a sessão que votaria a proposta

A articulação reuniu lideranças das mais diversas vertentes políticas e, segundo relatos, teria contado com o aval do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que durante sua interinidade na presidência da República despachou no Palácio do Planalto. No dia em que o acordo foi firmado, Maia recebeu diversos deputados no gabinete presidencial para tratar da pauta que seria votada à noite sob o comando do primeiro secretário da Casa, Beto Mansur (PRB-SP). A movimentação também contou com o apoio do líder do governo na Casa, André Moura (PSC-SE), e do presidente Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL). A intenção era votar o texto na Câmara no afogadilho numa única noite e, no dia seguinte, já aprová-lo no Senado. O líder do PP na Câmara, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), e os deputados Carlos Sampaio (PSDB-SP) e Vicente Cândido (PT-SP) seriam, segundo relatos de colegas, os cérebros da operação.

O objetivo da manobra era resgatar o Projeto de Lei 1.210/2007, arquivado desde 2008, para ali inserir o inesperado jabuti: uma emenda aglutinativa que criminalizaria o caixa dois e, na mesma ocasião, anistiaria os crimes desta natureza cometidos até então. O autor da proposta inicial, o ex-deputado Régis de Oliveira (PSC-SP), diz que seu texto não incluía nada sobre a contabilidade paralela. Ele contou ter ficado surpreso quando foi avisado que seu projeto havia sido usado na tentativa de votar um perdão explícito aos políticos envolvidos com a prática. “Tentaram dar um golpinho”, afirmou. Em seu texto, não havia menção a caixa 2. O ex-deputado propunha a votação em lista fechada, fim das coligações partidárias e a criação de cláusula de desempenho.

BRECHA

Hoje, a prática de usar recursos não declarados em campanhas eleitorais está inserida em normas genéricas e não é prevista especificamente na legislação. O caixa dois pode, assim, ser enquadrado como falsidade ideológica e considerado uma infração eleitoral, levando à perda de mandato ou à inelegibilidade. Ou, ainda, pode ser incluído em ações penais por corrupção, como no caso do mensalão. Com a desculpa de endurecer as regras atuais, os parlamentares buscavam, na realidade, encontrar uma brecha para aliviar as condenações de correligionários, com base no princípio de que lei não retroage para prejudicar o réu. Além disso, pretendia-se também inibir a força-tarefa da Lava Jato que tem sinalizado interesse em tratar caixa dois como corrupção e puni-lo severamente, a exemplo do escândalo de 2005.

O cheiro putrefato da tramóia começou a exalar pelos corredores do Legislativo quando Renan cancelou a sessão do Congresso Nacional que analisaria vetos presidenciais, mesmo havendo quórum. Caso ela tivesse ocorrido, a Câmara não poderia ter mantido a sessão destinada a votar a anistia ao caixa 2. “Fomos enganados. Houve uma fraude”, bradou o deputado Sandro Alex (PSD-PR). O texto teria sido redigido em comum acordo com os principais líderes da casa, entre eles do PMDB, PSDB, PT, DEM, PP, PR, PCdoB, PSC e PRB. O presidente da comissão especial sobre as Dez Medidas contra Corrupção, deputado Joaquim Passarinho (PSD-PA), classificou como “golpe lamentável” a articulação e disse ter estranhado a ausência de nomes de autores ou relatores do novo parecer na discussão. “Todo mundo sabia que existia algo rondando aquela Casa, então é muito estranho que ninguém tenha visto esse texto”, afirmou o parlamentar. Com a crise instaurada, os líderes partidários recuaram e o texto costurado de fato nunca veio a público. O próprio presidente da sessão, Beto Mansur, disse não ter conhecimento do documento e, diante da pressão, optou por encerrar a sessão. À noite, senadores disseram que Renan Calheiros teria se irritado com o recuo da Casa ao lado.

Ministro Geddel Vieira Lima foi a público defender o projeto.
Declarações não repercutiram bem no governo

O imbróglio respingou sobre o Planalto, que emitiu declarações desencontradas sobre o assunto. No dia seguinte à discussão na Câmara, o ministro Geddel Vieira Lima (PMDB-BA), responsável pela articulação política de Temer, abraçou a polêmica e disse ser pessoalmente favorável à anistia. “Quem foi beneficiado no passado, quando não era crime, não pode ser penalizado”, defendeu o ministro da Secretaria de Governo. Ele afirmou, contudo, não ter sido consultado sobre a votação do projeto anteriormente. “Esse debate tem de ser feito sem medo, sem preconceito, sem patrulha e sem histeria”, provocou o baiano, na contramão da opinião pública. A declaração teve resposta imediata de Temer, em coletiva concedida à imprensa ainda em Nova York. “Isso foi surpreendente para mim. Pessoalmente, não vejo razão para prosseguir ou prosperar nesta matéria”, ponderou o presidente. O circo, por ora, foi desarmado. Por ora.

NA CALADA DA NOITE

O QUE QUERIAM?
Ao tentar aprovar a tipificação do crime de caixa dois eleitoral, conforme recomendado pelo Ministério Público no pacto de medidas contra a corrupção, deputados pretendiam anistiar os políticos que tivessem cometido o crime

CRONOLOGIA
> Nos bastidores, líderes de partidos como PMDB, PSDB, PT, DEM, PP, PR, PCdoB, PSC e PRB entram em acordo sobre tentativa de anistiar caixa dois

> Intenção era votar na Câmara na segunda-feira (19) e aprovar a proposta definitivamente já no dia seguinte, no Senado

> Mesmo com quórum, presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), cancela a sessão do Congresso marcada para segunda-feira (19) e Câmara consegue se reunir à noite

> O primeiro-secretário da Câmara, Beto Mansur (PRB-SP), inicia discussão sobre o projeto de lei 1.210/2007, incluído na pauta no mesmo dia, ao qual seria apresentada uma emenda aglutinadora para criminalizar o caixa dois e anistiar crimes anteriores

> Líderes da Rede Sustentabilidade e do PSOL denunciam a manobra

> Ninguém assume a autoria da emenda, que nunca veio a público, e pressão leva Mansur a retirar o projeto de pauta

Fotos: Luis Macedo; André Coelho/Agência O Globo