RESGATE As vítimas da Pulse foram socorridas por um buraco aberto pela polícia
RESGATE As vítimas da Pulse foram socorridas por um buraco aberto pela polícia

Uma mistura de crime de ódio e terrorismo provocou, na semana passada, o tiroteio mais letal da história dos Estados Unidos. Cinquenta pessoas, inclusive o atirador, Omar Mateen, de 29 anos, foram mortas e 53 saíram feridas de um atentado à boate Pulse, frequentada por lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT) em Orlando, na Flórida. O local não era tão simbólico quanto os dos ataques terroristas coordenados pela Al Qaeda nos EUA, em 2001, ou pelo Estado Islâmico (EI) em Paris, no ano passado. Muito provavelmente, o horror em Orlando foi resultado das ações de um “lobo solitário”, que não precisou ir ao Oriente Médio para se radicalizar e usou as credenciais de um grupo que tem o Ocidente como inimigo para justificar seu ato de violência. Para o EI, que tem perdido território na Síria e no Iraque e assumiu a autoria do atentado, a propaganda foi eficaz.

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Às duas horas da manhã do domingo 12, Mateen entrou na Pulse armado com um fuzil semiautomático AR-15 e uma pistola e começou a atirar. Calmamente ele circulou pelo salão antes de ir ao banheiro, onde manteve algumas pessoas como reféns. Nessa hora, ligou para a polícia e jurou lealdade ao EI. Pelo celular, Mateen também checou as redes sociais para ver se havia alguma repercussão de seus atos. Enquanto isso, um grupo de policiais negociava sua rendição, mas pouco pôde ser feito, porque não só ele não pedia nada em troca dos reféns como ameaçava explodir o local. A chacina acabou três horas depois, quando policiais de elite abriram um buraco na parede da boate e mataram o atirador.

HOMENAGEM Na manhã de domingo, familiares e amigos fizeram vígilias pelos mortos
HOMENAGEM Na manhã de domingo, familiares e amigos fizeram vígilias pelos mortos (Crédito:AFP PHOTO / WOJTEK RADWANSKI)

Em busca da motivação do episódio, a vida de Mateen foi devassada. Nascido em Nova York e filho de imigrantes afegãos, o jovem muçulmano se mudou para a Flórida ainda pequeno. Nunca se destacou no esporte ou nos estudos e, até a semana passada, trabalhava como segurança de um condomínio. Mateen, que tinha um filho de três anos e estava em seu segundo casamento, tampouco era religioso, segundo sua ex-mulher, que pediu o divórcio depois de ser agredida por ele. “Quando ligou para a emergência, aquele homem provavelmente sabia que seu fim estava próximo”, disse à ISTOÉ Mark Potok, diretor do Southern Poverty Law Center (SPLC), organização do Alabama que identifica e mapeia grupos de ódio nos EUA. “Ele poderia escolher entre entrar para a história apenas como um cretino, ou como alguém que apoiava uma causa gloriosa.”

HOMOFOBIA segundo a ex-mulher, o atirador, Omar Mateen, não era muito religioso. O motivo para a chacina teria sido seu extremo ódio contra os gays
HOMOFOBIA segundo a ex-mulher, o atirador, Omar Mateen, não era muito religioso. O motivo para a chacina teria sido seu extremo ódio contra os gays (Crédito:AFP PHOTO / MYSPACE.COM)

Um traço de sua personalidade passou a ser a linha central da investigação. O pai relatou que Mateen era homofóbico e sua ex-mulher foi além: disse que ele tinha “tendências homossexuais”. A esses depoimentos juntaram-se os de frequentadores da Pulse, que afirmaram que já tinham visto Mateen bebendo no local várias vezes antes, e o de um homem que declarou ter trocado mensagens com ele por um aplicativo de namoro gay durante um ano. A polícia não descartou a hipótese de que isso fizesse parte dos planos de atacar a boate. A atual mulher de Mateen, Noor Salman, está sendo investigada como cúmplice do crime.

Independentemente dos motivos que levaram Mateen à Pulse naquela noite, algo é certo: seu objetivo era matar homossexuais. O ódio é compartilhado por radicais islâmicos, mas também por cidadãos de todas as etnias, nacionalidades e religiões. Segundo um relatório de 2015 da Organização das Nações Unidas, os homossexuais são constantemente discriminados no mundo todo e, em alguns países, estão sujeitos à pena de morte. Há quatro anos, Barack Obama se tornou o primeiro presidente americano a defender publicamente o direito ao casamento gay – foi acompanhado de sua ex-secretária de Estado e agora candidata democrata à Presidência dos EUA, Hillary Clinton.

“se tivermos terroristas radicalizados por conta própria, eles ficarão cada vez mais difíceis de serem encontrados” - Barack Obama, presidente dos EUA
“Se tivermos terroristas radicalizados por conta própria, eles ficarão cada vez mais difíceis de serem encontrados” – Barack Obama, presidente dos EUA (Crédito:Official White House Photo by Pete Souza)

Um levantamento feito pelo SPLC mostrou que, nos Estados Unidos, gays estão duas vezes mais propensos a sofrer um crime violento de ódio do que um muçulmano ou um negro e quatro vezes mais expostos que um judeu. “Nos últimos 15 anos, a sociedade americana mudou de forma positiva em relação à aceitação dos homossexuais”, diz Potok, do SPLC. “Mas, à medida que esse ambiente se torna mais tolerante, uma grande minoria fica cada vez mais raivosa.” Como aconteceu com o fim da segregação racial no país, a resposta para mudar essa realidade pode estar na demografia. Nascidos num contexto em que gays recebem proteção do Estado, os jovens tendem a ser menos preconceituosos e mais tolerantes do que as gerações anteriores.

É por isso que a batalha legal não sai da pauta dos movimentos LGBT. “Hoje a lei trata de forma diferente a vida de uma vítima LGBT e de uma vítima heterossexual”, afirma Bradley Sears, diretor do Williams Institute, da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Sears lembra que, nos tribunais americanos, com exceção do Estado da Califórnia, ainda vigora um dispositivo de defesa chamado de “pânico gay”. Segundo esse instrumento legal, se um indivíduo matar um homossexual ou transgênero que se aproximou sexualmente dele, ele pode alegar que, no momento do crime, estava num estado de “insanidade temporária” e, assim, ver sua pena reduzida. Outra polêmica sobre os direitos civis desses cidadãos aconteceu neste ano, quando o Estado da Carolina do Norte enfrentou uma disputa judicial com o governo federal por criar uma lei que exigia que transgêneros utilizassem banheiros públicos de acordo com o sexo registrado em sua certidão de nascimento.

Candidato republicano à presidência dos EUA, Donald Trump admitiu rever o acesso a armas de cidadãos investigados. A medida contraria seu partido
Candidato republicano à presidência dos EUA, Donald Trump admitiu rever o acesso a armas de cidadãos investigados. A medida contraria seu partido (Crédito:AP Photo/Chuck Burton)

“Vivemos sabendo que não somos completamente aceitos”, afirma Obed Caballero, coordenador de Serviços de Aconselhamento da Latinos Salud, organização sem fins lucrativos que apoia a comunidade LGBT latina em cidades da Flórida. “Infelizmente, ainda hoje é considerado um ato radical de rebeldia simplesmente existir enquanto gay.” Para o ativista, uma possível luta interna do atirador contra a definição de sua própria sexualidade não seria surpreendente. Caballero lembra que muitos homens que fazem sexo com outros homens não se definem abertamente como gays, mas como bissexuais e pansexuais. “A mesma homofobia que causou o atentado em Orlando também oprime aqueles que tentam descobrir sua identidade sexual, não permitindo que façam isso à sua própria maneira”, diz.

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O tiroteio na Pulse requentou o debate sobre o fácil e amplo acesso às armas nos EUA. Obama e Hillary voltaram a pedir ao Congresso que restrinja a venda de armas de guerra, como o AR-15 utilizado por Mateen e considerado o fuzil mais popular do país – estima-se que ao menos 5 milhões deles pertençam a americanos. Na quarta-feira 15, o candidato republicano, Donald Trump, sinalizou que mudou de ideia sobre a questão, à revelia de seu partido. Trump, que no domingo 12 havia defendido mais rigidez no controle ao terrorismo islâmico e à imigração, disse que levaria aos lobistas de armas que o apoiam a sugestão de proibir a venda de armamentos a cidadãos que estejam em listas de vigilância antiterrorismo.

O atirador de Orlando foi investigado duas vezes pelo FBI, a polícia federal americana, sem maiores consequências. Em 2013, Mateen disse a colegas de trabalho que tinha relação com grupos terroristas tão antagônicos quanto o Hezbollah xiita e a Al Qaeda sunita. Foi dispensando depois que os investigadores concluíram que ele não fazia ideia de como esses grupos de fato funcionavam. No ano seguinte, teve que esclarecer sua ligação com Moner Mohammad Abu-Salha, um americano que havia cometido um atentado suicida na Síria. Até onde o FBI descobriu, os dois só frequentaram a mesma mesquita. Por mais que agora se discuta por que Mateen não tenha sido impedido pelas autoridades de matar 49 pessoas, não é raro ver abusos de poder em agências do Estado americano. A Prisão de Guantánamo, aberta em 2002 em resposta aos atentados de 11 de setembro, é um exemplo disso. Mais de 700 detentos já passaram por lá. Hoje ela abriga 80 homens suspeitos de terrorismo, mas que nunca foram julgados.