Nos últimos três anos, três milhões de brasileiros deixaram de contar com a cobertura de planos de saúde. As principais razões para a debandada foram o agravamento da crise econômica, a alta do desemprego e os aumentos sucessivos nos preços dos produtos — que tiveram alta de até 40% em um único ano. De uma hora para outra, ruiu um dos principais pilares da vida da classe média brasileira: não depender do Sistema Único de Saúde (SUS). Para pessoas habituadas a dispor da segurança de um atendimento em geral melhor do que o oferecido na rede pública, ver-se na situação de vulnerabilidade proporcionada pela ausência de cobertura pode significar um pesadelo. Não é bem assim. A realidade de não conseguir mais pagar por isso e a necessidade de continuar com os cuidados de saúde têm levado essa parcela considerável da população para instituições públicas ou opções particulares a preços bem mais acessíveis— alternativas que começaram a surgir justamente para atender a esse público. E boa parte dele está descobrindo que sim, há vida fora dos planos de saúde.

REDE PARECIDA O casal Anderson e Márcia Sansoni é assinante de um serviço pelo qual conseguem atendimento médico e exames particulares. Por meio da plataforma, ela fez check-up em um dos laboratórios que usava quando tinha convênio (Crédito:Gabriel Reis)

O paulista André Garcia, 48 anos, lojista, e sua mulher Karina Garrido, 41 anos, funcionária pública, estão entre os que experimentam pela primeira vez o SUS recentemente. Em 2016, os dois deixaram seus planos por causa dos aumentos. “De uma hora para outra passou de R$ 300 para quase R$ 600”, diz Karina. É verdade que grande parte da rede pública está sucateada e a espera pelo atendimento é grande. Porém, a ideia de que a assistência no SUS é sempre abaixo do mínimo aceitável se mostra equivocada. Quem tem em mente apenas os horrores costumeiramente relatados pode se surpreender. As idas do casal à Unidade Básica de Saúde da Vila Romana, bairro de classe média de São Paulo, não decepcionaram: “É igual ao que tínhamos”, diz André. O mesmo vale para a demora no atendimento: “A espera para agendar consulta pelos convênios não é tão diferente”, afirma Karina.

Laboratórios

Ao mesmo tempo em que cresce a demanda no acesso público, aumentam as alternativas de consultas, exames e até internações feitos de forma particular com preço mais baixo do que o habitual. São várias modalidades de empresas que oferecem serviços assim. Há plataformas como o Doutor123 e o VidaClass, que permitem localizar médicos que cobram de R$ 60 a R$ 220 por consulta. Outra alternativa em expansão são as clínicas populares, cujos preços em geral variam entre R$ 50 e R$ 150. Uma delas é a rede Dr. Consulta, na capital paulista. Em 2014, eram quatro centros médicos. Em 2017, o número saltou para 45. Outra é a Cia da Consulta, que estabeleceu parcerias com laboratórios para tornar os exames mais acessíveis. Este ano a rede abriu dois novos pontos em São Paulo. “Queremos chegar entre sete e dez clínicas nos próximos anos”, informa Vitor Fiss, CEO da empresa.

Rebeca Carvalho, 52 anos, e a filha, Larissa, 20 anos, usam esses serviços. Ambas ficaram sem seguro saúde depois que Rebeca, administradora de empresas, perdeu o emprego em 2016. As duas procuraram a rede para check-ups básicos. Não foi uma decisão uma fácil. “Estava acostumada a ser atendida nos melhores hospitais, a ir em médicos particulares”, lembra Rebeca. Ela se surpreendeu quando encontrou um estabelecimento com ares modernos, confortável e bom atendimento. Rebeca passou por uma consulta dermatológica pela qual pagou R$ 90 e Larissa submeteu-se a um check-up ginecológico, que incluiu exames de imagem, no qual desembolsou R$ 400.

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CLIENTES SUS O casal André Garcia e Karina Garrido está sem plano de saúde e frequenta posto público na Vila Romana, bairro de classe média na capital paulista. Os dois encontraram atendimento parecido com o que recebiam nas clínicas do convênio (Crédito:Marco Ankosqui)

A Cia da Consulta firmou uma parceria com o grupo DASA, que reúne laboratórios de análises clínicas e de imagem. Para o conglomerado de laboratórios, trata-se de uma boa estratégia também, uma vez que aumenta seu poder de penetração em um público particular que não pode pagar pelos preços cheios, mas deseja manter a realização de exames em instituições privadas. “Antes, o total de pacientes que chegavam de forma particular era de 10%. Hoje, são 20%”, explica Emerson Gasparetto, diretor médico do DASA. Além de análises como hemogramas, é possível fazer, pelo sistema, testes de imagem como tomografias e ultra-som.

O segredo para oferecer tudo isso a um custo mais baixo está em uma engenharia financeira que resulta em enxugamento de custos, o que inclui estruturas mais simples e menos investimentos em hotelaria. Isso ajuda a explicar a capacidade de oferta de produtos mais baratos. No caso dos laboratórios, eles levam vantagem também ao receberem mais rapidamente. Nas parcerias, ganham no pagamento em débito ou crédito, enquanto nos procedimentos feitos por meio dos convênios demoram até três meses para receber.

A estratégia é a mesma usada na Labi Exames, rede de unidades laboratoriais que espera fechar o ano com sete postos em São Paulo. “Nossa meta é atender três milhões de pessoas por ano em 2022”, afirma Octavio Fernandes, vice-presidente de operações da rede. O alvo da nova empresa são pacientes do SUS que desejam rapidez para realizar exames e também os das clínicas populares.

Assinatura anual

Nesse cenário de transformação, outra novidade é a Consulta do Bem, uma plataforma que faz a intermediação entre pacientes, laboratórios e hospitais, e cobra assinatura mensal a partir de R$ 29. “Oferecemos uma rede de médicos e estabelecimentos que dispõem dos serviços a um custo mais acessível”, explica Rafael Morgado, um dos diretores da empresa. Nesse ano, a empresa estabeleceu suas primeiras parcerias com hospitais de São Paulo para a realização de cirurgias e atendimentos em pronto-socorros a preços previamente fechados e mais baixos do que os cobrados de forma particular.

A família do empresário André Dias, 46 anos, sua mulher, Camila, 34 anos, e os filhos Iara, 3 anos, e Igor, 14 anos, teve uma boa ideia do que isso significa. Sem plano de saúde, eles assinanaram o Consulta do Bem. Em fevereiro, foram surpreendidos com uma dor abdominal súbita sentida por Igor, depois que menino quebrou o braço e foi obrigado a tomar alguns medicamentos. A princípio, o garoto deveria ser submetido a uma cirurgia. As cotações feitas em hospitais particulares chegavam a até R$ 14 mil, sem médico incluído. Pelo Consulta do Bem, conseguiram um orçamento de R$ 9 mil, tudo incluído. Juntaram o dinheiro para o pagamento, mas descobriram no Hospital São Paulo, onde foram atendidos, que o procedimento não seria necessário. Pagaram R$ 350 pela consulta e exames. “Quando deixamos de pagar os planos, fiquei com muito medo”, lembra Camila. “Mas vi que não precisamos nos sentir reféns. Aprendemos a viver sem isso.” A produtora de TV Márcia Sansoni e o marido, o advogado Anderson, também assinam o serviço. Ela está desempregada há três anos. “Tentei continuar pagando o plano, mas não consegui. As pessoas estão saindo porque não têm como pagar e eles continuam aumentando o preço”, critica Marcia. Ela tem a assinatura do pacote anual, por R$ 129, e fez check-ups em alguns dos locais que frequentava antes, quando tinha plano de saúde. “Não esperava que o mesmo laboratório fizesse isso.”

Há aumento de procura nas redes de clínicas populares, que oferecem consultas e exames mais baratos. Parte delas está em expansão

NOVA ROTINA Rebeca e a filha, Larissa, usam os serviços de uma rede de clínicas com preços mais baixos. Desempregada desde 2016, Rebeca ficou satisfeita com a qualidade da assistência que ambas receberam (Crédito:Divulgação)

Os planos de saúde tiveram aumento de preço muito acima da inflação. Os individuais, em torno de 13%. Os coletivos, empresariais ou por adesão, de até 40%. Para piorar, a oferta pelos planos individuais e familiares caiu. Em 2010, eram seis mil produtos do gênero, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Hoje, são quatro mil. Nessa modalidade, as regras são mais rígidas. Os planos individuais estão sujeitos à regulação mais estrita pela agência em termos de aumento. E o plano só pode ser cancelado em caso de desistência do usuário ou por inadimplência. Nos coletivos, a elevação de preço não está sob controle da ANS e pode haver rescisão unilateral do contrato pelas operadoras. “Por isso, as empresas interromperam a venda desses contratos”, diz o advogado Rodrigo Araújo, especialista em Direito da Saúde.

Reserva financeira

A agência alega que não pode obrigar as operadoras a ofertarem todos os tipos de planos. “Estimulamos a concorrência do setor, aprimorando, por exemplo, a portabilidade de carências, medida que pode induzir à comercialização de planos individuais”, afirmou em nota à ISTOÉ. A Associação Brasileira de Planos de Saúde, que representa o setor, argumenta que mais de 50% das seguradoras oferecem os planos. “Mas nem todas ofertam por não ser um produto fácil de gerir”, afirma Marcos Novais, economista-chefe da instituição. A organização que representa as administradoras de planos diz que seu papel não é o de oferecer produtos. E rebate as críticas de que seu trabalho de intermediação entre as operadoras e o consumidor encarece o serviço. “Isso é um discurso de operadoras que se sentem incomodadas quando confrontadas com questionamentos sobre aumentos”, afirma Alessandro de Toledo, presidente da Associação Nacional das Administradoras de Benefícios. São cerca de 130 operadoras de saúde no Brasil.

A oferta de planos individuais diminuiu nos últimos oito anos. E as mensalidades têm sido reajustadas bem acima da inflação


No meio disso tudo fica o consumidor, ávido por soluções que atendam ao seu bolso e necessidade. Vale a pena sair do guarda-chuva dos planos de saúde para recorrer aos novos serviços ou ficar na dependência do atendimento público? A resposta varia de acordo com questões muito pessoais, entre elas a etapa de vida e o valor pessoal que se dá aos cuidados com a saúde e as prioridades nesse aspecto da vida. “Se o objetivo é usar o médico dos convênios, não compensa”, afirma Liliane Cristina Segura, professora de Administração de Empresas da Universidade Mackenzie. “Os médicos estão saindo dos planos, as pessoas pagam particular e o reembolso não é nem um terço do que foi gasto.” Caso a preocupação seja manter alguma segurança de atendimento particular, incluindo o oferecido pelas novas opções que estão chegando ao mercado, o ideal é ter uma reserva financeira. Deve ser suficiente para cobrir gastos que poderão advir considerando até condições mais graves, como câncer ou acidentes sérios. “É algo em torno de R$ 50 mil a R$ 100 mil”, afirma Evandro Buccini, economista-chefe da Consultoria Rio Bravo. Sair dos planos apenas depois de juntar essa importância é uma decisão que deve ser considerada para eventuais imprevistos.

 


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