Lewt olha com desejo para Pearl Chavez e ela corresponde. No íntimo, o espectador sabe que estão condenados por seu amor louco. O jornalista acompanha a princesa incógnita, farejando a grande matéria, em Roma. Submete-se à prova da verdade, colocando a mão na bocarra da estátua. Retira-a e onde está a mão? São momentos que ajudaram a esculpir a lenda de Gregory Peck, em filmes como Duelo Sol, o western de King Vidor, e A Princesa e o Plebeu, a comédia de William Wyler.

Um século de Gregory Peck. Ele nasceu em 5 de abril de 1916 em La Jolle, na Califórnia. Fez teatro e, aos 28 anos, em 1944, debutou no cinema no papel principal de Quando a Neve Tornar a Cair/Day of Glory, de Jacques Tourneur. No mesmo ano protagonizou As Chaves do Reino, adaptação do romance de um escritor hoje pouco lembrado, mas na época muito popular – A.J. Cronin -, e aí, sim, foi um estouro. Contratado da Fox, Gregory Peck virou astro, um dos maiores de Hollywood. Não era sofisticado como Cary Grant nem viril como Gary Cooper. A qualidade de Peck era outra. Um sorriso franco e a obstinação de quem não desistia. Não por acaso ele foi o Capitão Ahab na adaptação que John Huston fez de Moby Dick, de Herman Melville.

Peck filmou com muitos grandes diretores. Elia Kazan, Alfred Hitchcock, Raoul Walsh, Henry King. Com esse fez uma sucessão de bons filmes, mas os que ficaram, foram westerns – o psicológico O Matador, de 1950, e Estigma da Crueldade, de 1958. No mesmo ano do segundo, e com Wyler, fez outro western memorável – Da Terra Nascem os Homens (The Big Country). Quem viu não esquece a partitura de Gerome Moreoss nem a cena emblemática. Peck faz o almofadinha do Leste. Briga a socos com Charlton Heston, como o durão do Texas que quer mostrar quem manda na fazenda. Brigam ao alvorecer, sem testemunhas. Heston acha que Peck não quer que ninguém o veja apanhar, mas o sujeito é duro na queda. Rebenta o outro na pauleira.

É curioso, mas os westerns de Peck não são tradicionais. Ele nunca é o mocinho a que o público está acostumado. Subverte, desde o interior, códigos de comportamentos – sensual, obsessivo. Em 1968, foi inesquecível como o guia que resgata a mulher (branca) de um chefe índio em A Noite da Emboscada, de Robert Mulligan. O chefe chama-se Salvaje e não quer que a mulher leve seu filho. Move implacável perseguição ao trio de fugitivos. Peck não desiste, o desfecho é poderoso. Com Mulligan, ele fez em 1962 o filme que lhe valeu o Oscar – O Sol É para Todos.

Pense na figura mítica do herói. Pense nos westerns e filmes de guerra que Peck interpretou – Terra Ensaguentada, de Robert Parrish, Os Canhões de Navarone, de J. Lee Thompson. E outros – o advogado íntegro que enfrenta o celerado que o considera responsável por sua prisão e ressurge atrás de vingança em O Círculo do Medo, também de J. Lee Thompson, thriller (de terror) que Martin Scorsese refilmou como Cabo do Medo, sem chegar perto do original. O professor envolvido na trama de espionagem de Arabesque, de Stanley Donen, quando contracenou com Sophia Loren. Esse homem, vale lembrar, teve nos braços grandes estrelas, mulheres e atrizes que também fizeram história – Sophia, Audrey Hepburn, Jennifer Jones, Jean Simmons… A lista é infindável.

São tantos ‘mocinhos’. Para muitos críticos, Peck interpretou o maior herói da história de Hollywood, e o personagem não pega em armas nem sai dando socos. É um ícone da cidadania. Atticus Finch, o protagonista de O Sol É para Todos, belo filme de Robert Mulligan, é advogado numa cidadezinha do Sul dos EUA. Defende um negro acusa de violar uma branca. O filme baseia-se no romance de Harper Lee, To Kill a Mockingbird. É visto pelo ângulo da filha, a quem Atticus, por suas atitudes, dá lições de antirracismo e direitos humanos.

Na vida, Peck também era assim e, em 1971, produziu do próprio bolso – e sem interpretar nenhum papel, o que aumentaria a chance de reembolso – um filme que se tornou clássico contra a Guerra do Vietnã. The Catonsville Trial, de Daniel Berrigan e Gordon Davidson. Talvez cansado da própria correção, Peck surpreendeu em um de seus últimos papéis. O nazista Mengele de Os Meninos do Brasil, de Franklin J. Schaffner. De branco, e na fronteira do Brasil com o Paraguai, ele faz experimentos genéticos e produz clones do pequeno Adolf, na esperança de que um deles vire o novo ‘führer’ e reinicie o Reich. Um louco que tromba com o caçador de nazistas Laurence Olivier e, no desfecho, os dois velhos, Olivier e Peck, rolam no chão, estapeando-se, mordendo-se. Se os heróis de Peck surpreendiam, seu vilão, na despedida, surpreende mais ainda. Ele morreu aos 87 anos, em 12 de junho de 2003.