Filho de indianos, o diretor M. Night Shyamalan cresceu acreditando que o mal sempre resultaria em algo bom em sua vida — pelo menos em médio ou longo prazos. Sua filosofia de vida curiosamente se aplica ao seu novo status na indústria do cinema. Após vários tropeços na carreira, sobretudo com “Fim dos Tempos’’ (2008), “O Último Mestre do Ar’’ (2010) e “Depois da Terra’’ (2013), o ex-queridinho de Hollywood, apontado inicialmente como o “sucessor de Alfred Hitchcock”, alcança a redenção, tornando-se um dos cineastas mais lucrativos da atualidade.

Leia entrevista com M. Night Shyamalan no fim da matéria

Com lançamento no Brasil no dia 23, “Fragmentado”, seu mais recente thriller, custou apenas US$ 9 milhões e, mesmo sem ter estreado em todos os mercados, já arrecadou cerca de US$ 250 milhões mundialmente. Ou seja, quase 28 vezes o valor que consumiu. Em solo norte-americano, a história do sequestrador que sofre do transtorno de múltiplas personalidades figura como a terceira maior bilheteria de Shyamalan. Com renda local de US$ 135 milhões, o filme protagonizado por James McAvoy só perde para “Sinais” (2002), que somou mais de US$ 227 milhões, e para “O Sexto Sentido” (1999), responsável por mais de US$ 293 milhões de arrecadação nos EUA.

“É preciso fracassar de vez em quando. Quem não faz isso, não está fazendo a coisa certa, por ter medo de abdicar das escolhas seguras”, disse o diretor à ISTOÉ, em Los Angeles. Shyamalan foi forçado a começar (quase) do zero ao ver o seu “Depois da Terra”, superprodução de US$ 130 milhões, fazer apenas US$ 60 milhões de bilheteria nos EUA. O filme estrelado por Will Smith só não deu prejuízo graças ao mercado internacional, onde totalizou US$ 183 milhões. “Percebi que o público adora quando equilibro a minha espiritualidade com temas obscuros. Mas não posso extrair o aspecto sombrio. Se faço isso, deixando a luz entrar, sou acusado de ser sentimental e ingênuo. Ninguém quer que eu faça filmes na linha Disney”, afirmou, rindo.

 SUTILEZAS O ator James McAvoy na pele de algumas de suas múltiplas personalidades: no total, são 23
SUTILEZAS O ator James McAvoy na pele de algumas de suas múltiplas personalidades: no total, são 23

DESESPERO
Mostrando que aprendeu a lição, Shyamalan brinca com o medo do espectador diante de uma situação perversa. Em parceria com o produtor Jason Blum, da franquia “Atividade Paranormal”, com quem ele trabalha desde “A Visita” (2015), buscando o terror mais psicológico. O resultado é um jogo mental cruel, que se revela muito eficaz ao longo da narrativa. Três adolescentes são sequestradas não por um homem, mas por várias pessoas, à medida que o algoz demonstra ter múltiplas personalidades (23, no total), graças a mudanças sutis do talentoso McAvoy. Três delas se destacam: Dennis, um cara atraído por meninas; Patricia, mulher frustrada por estar presa ao corpo de homem; e Hedwig, um garoto que se recusa a sair da puberdade. Como o sequestrado geralmente precisa manipular o sequestrador para sair com vida, as meninas ficam cada vez mais desesperadas ao lidarem com um algoz diferente a cada momento. “A ideia me pareceu terrivelmente divertida”, diz Shyamalan.

M. Night Shyamalan
M. Night Shyamalan

ENTREVISTA
“Busquei mais instinto”

Como fez um filme de espírito independente render tanta bilheteria?
Quis voltar aos filmes pequenos. Queria saber como me sairia sem poder contratar um diretor de fotografia de renome, como Roger Deakins, com quem fiz “A Vila” (2004). Como só o seu salário tomaria quase metade do orçamento, optei por Mike Gioulakis, que faz mais TV. E assim foi com vários nomes do elenco, como Anya Taylor-Joy, e da equipe técnica. Passei a buscar menos experiência e mais instinto.

O que quis dizer ao retratar a menina vítima de abuso sexual em casa como a que se sai melhor no cativeiro?
Acredito nas filosofias que vêem o obstáculo como o melhor caminho. O mais difícil é geralmente o percurso que você precisa fazer para chegar aonde quer. Também gosto da ideia de que a vítima se transforma em algo mais, sendo mais forte que os outros.

Há sempre uma razão por trás de tudo?
Sim. Até na forma como conheci James McAvoy, na ComicCon, em 2015. Vê-lo careca, recém-saído da filmagem de “X-Men: Apocalipse”, me ajudou na concepção de “Fragmentado”, que eu escrevia. Percebi que, se o ator estivesse com a cabeça raspada, seu rosto seria uma espécie de quadro branco, onde ele pintaria os mais diferentes personagens.

Ter enfrentado percalços com os filmes anteriores ajudou você a se tornar um diretor melhor?
Acredito que sim, ainda que eu tenha uma explicação para o que aconteceu na minha carreira, nos últimos anos.

Qual é?
A percepção de quem eu sou, principalmente por eu ter ficado conhecido por filmes de suspense, atrapalhou um pouco a recepção das outras produções que fiz. Mas eu simplesmente me senti no direito de dar um tempo nos thrillers, passando a me dedicar aos filmes-família. Até porque sou pai (de três garotas: Saleka, de 20 anos, Ishana, de 17, e Shivani, de 11). Eu não podia imaginar que o cara de 40 anos veria também esses outros filmes. Claro que eles não foram feitos para o público amante do suspense, que saiu dizendo que eu tinha perdido a mão.

Por quê há sempre algo de sobrenatural nos seus filmes?
Porque acredito sermos seres comuns cercados pelo extraordinário. O meu cinema trata disso, ainda que eu não apresente o sobrenatural como faz Michael Crichton (autor do livro “Jurassic Park”). Ele é sempre brilhante ao fornecer, entre dez coisas, nove fatos verídicos e apenas um que não é real. Como os nove fatos têm fundamento, ninguém repara naquele que não tem, o que possibilita um dinossauro aparecer em uma ilha (risos).

Muitas vezes há um questionamento da crença no sobrenatural nas suas obras.
Por mais que eu acredite, gosto de brincar com a ideia. Por exemplo, todos nós acreditamos na teoria de que os pacientes são curados tomando placebo. Acreditamos por ser um fato científico, certo? Ainda assim, muita gente tem dificuldade em acreditar que o fato de acreditar pode mudar algo na nossa vida – embora os pacientes medicados com placebo provem isso.

No final de “Fragmentado”, a participação especial de Bruce Willis, na pele de David Dunn de “Corpo Fechado” (2000), dá a entender que você está preparando algo novo. Seria a prometida continuação da história do segurança com superpoderes?
Sim. O que posso dizer é que, em algum momento, haverá um cruzamento entre o universo de “Corpo Fechado” com o de “Fragmentado”. Bruce e eu pensamos em uma sequência há anos. Talvez a hora seja essa.

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