No Cine OP, a programação foi aberta com a versão restaurada de Cabra Marcado para Morrer. Difícil não pensar no híbrido de ficção e documentário de Eduardo Coutinho ao falar sobre A Academia das Musas. O longa do espanhol José Luis Guerín proporciona uma rara experiência ao cinéfilo. A audaciosa proposta de Guerín é conciliar cinema e filologia, cinema e filosofia. Filmar na sala de aula. Para isso, ele acompanha com sua câmera uma aula de Raffaele Pinto. O italiano (de Nápoles) é docente de filologia na Universitat de Barcelona.

É considerado um dos maiores especialistas do mundo em Dante e sua Divina Comédia. Pinto preside a Societat Catalana de Estudis Dantescos. Na aula, ele propõe uma discussão sobre a mítica figura da musa. Tenta motivar os alunos e, principalmente, as alunas, a fazerem a ponte entre a poesia clássica e a vida contemporânea. A mulher, nessa época de feminismo, ainda pode ser musa? Ou a figura da musa liga-se a uma distante era cavalheiresca? E cultivar a musa não é um signo machista? Uma relíquia da sociedade patriarcal?

A discussão acirra-se na sala de aula e o mais importante é que prossegue fora dela. Guerín acompanha Raffaele Pinto com uma aluna dentro do carro dele, e depois em casa, com a mulher, que também é docente (e uma intelectual de alto nível). Todas essas discussões levam a uma revelação, sobre o envolvimento do notório professor com as alunas, uma em especial.

Sua mulher questiona, intelectualmente, o affair. Cria-se a insólita – no cinema – discussão, no melhor sentido do termo, sobre a atração, o amor, a traição. O tema da musa desdobra-se, ganha novos significados. A discussão que começou filológica abrange outras disciplinas – pedagogia, filosofia. E a essa altura o espectador sente-se confuso. A Academia das Musas é ficção? É documentário? Onde termina um e começa outro?

Não é sempre que o cinema propõe um experimento semelhante. O cinema, e o espanhol, tem contado muitas histórias de triângulos, de homens e mulheres apaixonados, de mulheres à beira de um ataque de nervos. Pedro Almodóvar é mestre na abordagem desses sentimentos complexos, e vem aí a sua Julieta, que dá nome a um filme belíssimo. Mas o foco de A Academia das Musas é outro. Para permanecer no território da filologia, que é uma disciplina voltada à linguagem, o importante, agora, é a própria linguagem do cinema.

Na sala de aula, a câmera está na mão, interage com as alunas e o professor. Nas externas, a câmera cola-se ao vidro do carro, à janela da casa, quando Pinto discute com a mulher suas ferramentas pedagógicas e ela questiona seu método. Nessas tomadas, em particular, o vidro cria uma espécie de textura, com seus múltiplos reflexos. Haveria o risco, quem sabe?, de a imagem tornar-se decorativa, mas ela não é uma intrusa na história.

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Nas sucessivas entrevistas que tem dado sobre seu filme, Guerín diz sempre a mesma coisa: “Meu papel é semear dúvidas”. Daí esse formato híbrido que pode, eventualmente, confundir o público. À mulher, que o interpela, Pinto responde, a título de defesa, que ensinar é seduzir. E é nesse processo de seduzir, para ensinar, que ele se envolve com as alunas, que viram suas musas. Tudo muito direto, e aparentemente simples, mas na verdade complexo até demais. Nesse universo fascinante que é o da Academia das Musas, as questões ampliam-se. Não será Raffaele Pinto um machista que se aproveita do seu notório saber para impressionar as alunas? Até que ponto elas são objeto nesse processo de sedução? Não estarão as musas tornando seu mestre vulnerável? E toda essa conversa sobre palavras, conceitos, não será sustentada pela atração dos corpos? Para quem entra no clima, A Academia das Musas não é menos que fascinante.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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