Ex-ministro das Relações Exteriores condena questionamento de países bolivarianos ao impeachment e diz que o Mercosul precisa ser atualizado

Ministro das Relações Exteriores e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, o jurista Celso Lafer deposita no novo chanceler, José Serra, a esperança de ver o Itamaraty recuperar importância no governo – ainda que, durante esse processo, o órgão passe por um enxugamento no número de embaixadas e consulados. “Faz parte do esforço geral que o governo está fazendo de ter um Estado mais eficiente”, diz. “Os governos do PT, em especial nos dois mandatos do presidente Lula, superestimaram aquilo que poderiam alcançar com a política externa.” A aproximação com os governos bolivarianos, como o da Venezuela, nesse período provocou uma saia-justa na primeira semana de Michel Temer na Presidência da República, quando eles questionaram a legalidade do processo de impeachment contra Dilma Rousseff. Para Lafer, a interferência foi “imprópria, para dizer o mínimo.” “Numa democracia presidencial como a nossa, o título para governar vem do resultado do processo eleitoral”, afirma. “Mas a contrapartida desse direito é o dever de cumprir as normas jurídicas do País.” Aos 74 anos, o ex-chanceler, que também é membro da Academia Brasileira de Letras, tem se dedicado à vida acadêmica e deve publicar, ainda em 2016, um estudo sobre grandes crimes.

ISTOÉ – Na semana passada, o novo chanceler, José Serra, disse que estuda fechar embaixadas e consulados na África e no Caribe. As despesas com manutenção dessas representações são maiores do que o custo político de fechá-las?

Celso Lafer – Ele vai fazer uma avaliação e verificar em que medida cabe ou não descontinuar ou criar embaixadas cumulativas. Hoje em dia temos um número muito grande de embaixadas e consulados. A tarefa de um não se confunde com a do outro. A do consulado, além daquilo que são aspectos notariais ou de registros civis, também cuida da proteção de brasileiros no Exterior. Essa é uma tarefa importante que cabe ao Itamaraty. Naturalmente, ao se abrir um consulado, é preciso ver se ele tem uma densidade de obrigações que o justifiquem. Faz parte do esforço geral que o governo está fazendo para ter um Estado mais eficiente e reduzir custos.

ISTOÉ – O número atual de embaixadas e consulados é excessivo?

Lafer – Como não faço parte do grupo de estudos, não quero aventurar uma resposta taxativa. Acho que, no período mais recente, houve uma expansão motivada pelo desejo de uma presidência política mais abrangente do que a tradicional.

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ISTOÉ – Mais abrangente em que sentido?

Lafer – As administrações do PT procuraram dar ênfase às relações Sul-Sul. Havia uma ambição de mudar a geografia econômica do mundo. Mas, na política externa, é preciso evitar dois riscos: subestimar o que se pode fazer, porque aí não se sai do lugar, e superestimar o que se pode fazer e, com isso, estender suas linhas além daquilo que é necessário para a inserção internacional do Brasil. Os governos do PT, em especial nos dois mandatos do presidente Lula, superestimaram aquilo que poderiam alcançar com a política externa.

ISTOÉ – Na primeira medida como chanceler, Serra rechaçou Bolívia, Cuba, Equador, Nicarágua e Venezuela, que haviam questionado a legalidade do impeachment de Dilma Rousseff. Para o sr., a nota foi publicada num tom correto?

Lafer – Sim. Ele colocou com muita clareza que os procedimentos que caracterizaram o processo de impeachment do Brasil estão em perfeita consonância com a Constituição e têm sido avalizados em seus procedimentos pelo Supremo Tribunal Federal. Vivemos um momento de plenitude dos direitos e de grande espaço para a liberdade de expressão. No Brasil, tem se cumprido com absoluta plenitude as regras jurídicas do Estado democrático de direito.

ISTOÉ – Para alguns diplomatas, o tom da nota é agressivo e preocupante, porque poderia levar a uma quebra da neutralidade da política externa brasileira. Existe esse risco?

Lafer – Se tivesse havido uma ruptura da cláusula democrática, poderia se discutir se manifestações dessa natureza têm ou não têm procedência. Como não houve, acho que ele respondeu à altura, na segurança da visão que o governo tem e, que a meu ver é correta, de legalidade e legitimidade.

ISTOÉ – Como ficará a relação do Brasil com os países bolivarianos daqui para frente?

Lafer – Os países bolivarianos têm tanto quanto nós o interesse em manter as relações de cooperação e convivência. O Brasil é um ator importante na América do Sul.

ISTOÉ – Esse é o momento de o Brasil se voltar mais aos países do Norte?

Lafer – Cabe ao Brasil manter relações construtivas com todos os países do mundo e diversificar seus mercados, porque isso é também uma forma de manter a autonomia do País. Agora, como dizia um grande homem público francês, Mendes France, “governar é escolher”. É preciso escolher suas prioridades à luz da conjuntura atual.

ISTOÉ – Nesse contexto, como o sr. vê o futuro do Mercosul?


Lafer – O Mercosul precisa de um “aggiornamento” (termo italiano para atualização). Ou seja, precisa ser atualizado para fazer frente a uma conjuntura distinta daquela que o caracterizou. Acho que existe espaço para isso, e o novo governo argentino, do presidente Mauricio Macri, será um parceiro construtivo.

ISTOÉ – Incorporar o comércio exterior ao Itamaraty foi uma boa ideia para oxigenar essa área?

Lafer – O Itamaraty tem sido o grande negociador na área da diplomacia econômica e comercial, com os acordos regionais e na Organização Mundial do Comércio. A pasta tem gente qualificada, tem memória e pode contribuir para isso. Acho que essa incorporação da Apex tem sua lógica, porque o Itamaraty sempre se dedicou à promoção comercial do País.

ISTOÉ – O Itamaraty sofreu cortes no Orçamento nos últimos anos. Com o Serra, ele ganhará mais importância?

Lafer – Minha expectativa é de que ele o faça e acho isso importante ter um homem público como o Serra para dar uma densidade própria ao Itamaraty nesse momento em que ele precisa recuperar suas receitas para fazer frente aos desafios. A presidente Dilma teve muito menos interesse pela condução da política externa do que Fernando Henrique e Lula, e com isso delimitou o campo de atuação do Itamaraty.

ISTOÉ – Como ex-presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), lhe agrada a indicação de Gilberto Kassab ao Ministério da Ciência e Tecnologia?

Lafer – Vou aguardar quem ele vai indicar especificamente para cuidar da área antes de me pronunciar.

ISTOÉ – Temer cogitou nomear o bispo Marcos Pereira para a pasta. Foi um alívio saber que o presidente mudou de ideia?

Lafer – Sem dúvida nenhuma. Escrevi um artigo recentemente que cuida da importância da laicidade no século 21. O Brasil é um estado laico, onde existe uma separação entre a religião e o Estado, e os ditames da fé ou das religiões são conselhos para os fiéis e não comandos da sociedade. Uma das virtudes da laicidade é a noção de autonomia. Isso pressupõe a liberdade de pesquisa e de uma visão não dogmática aos problemas enfrentados como, por exemplo, as pesquisas de células-tronco.

ISTOÉ – Qual foi sua primeira impressão da nova equipe ministerial?

Lafer – Na área econômica, são nomes todos muito qualificados que vão ajudar Henrique Meirelles a trabalhar o desafio que ele tem pela frente. A escolha de Flávia Piovesan para a Secretaria de Direitos Humanos foi um gol de placa. Como advogado constitucionalista, o presidente Temer reconhece que os direitos humanos são uma política de Estado, não de governo. Flávia tem uma trajetória respeitável, conhecimento, militância e talento para aprofundar a questão em nosso País.


ISTOÉ – Temer assumiu a Presidência com o discurso de unir o Brasil. Para o sr., isso é possível num momento de tanta polarização?

Lafer – O (André Franco) Montoro, com quem o Michel ingressou na vida pública, gostava de fazer uma citação de um pensador cristão, Teilhard de Chardin. Ele dizia que “é pela elevação que se chega à convergência”. Acho que Temer vai procurar seguir essa lição.


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