O filme “Valerian e a Cidade dos Mil Planetas” realizou o sonho de infância do diretor francês Luc Besson de levar às telas os quadrinhos cult dos anos 60 com tecnologia de geração de imagem digital (CGI) e o orçamento mais caro da história do cinema da da Europa: US$ 177,2 milhões. Mesmo assim, a aventura francesa fracassou nos Estados Unidos: arrecadou US$ 36,5 milhões nas 3.500 salas onde estreou, em 21 de julho. No resto do mundo, a história do casal de jovens que tenta restaurar o meio-ambiente e a cultura de uma civilização alienígena anda conquistando novos seguidores. Arrastou 1,5 milhão de franceses aos cinemas e aposta em uma carreira razoável no Brasil, onde acaba de estrear. Até a semana passada, a produção havia arrecadado US$ 88 milhões fora dos EUA.

Luc Besson (Crédito:Divulgação)

Na realidade, o longa-metragem de vertiginosas 2 horas e 17 minutos não se enquadra no gosto americano estereotipado — que virou o perfil do consumidor mundial médio de cinema. Nem mesmo o fato de ter sido rodado em inglês e as presenças de dois mitos americanos — a cantora Rihanna como a stripper Bubble ou o jazzista Herbie Hancock como Ministro da Defesa — foram suficientes para romper o bairrismo da audiência local. O filme foi um fiasco talvez por se mostrar excessivamente imaginoso — e europeu — para os padrões da cultura pop vendida por Hollywood.

Humanismo

“Não me preocupo com a reação das plateias americanas”, disse Besson em entrevista concedida em São Paulo, onde esteve na semana passada para encerrar a turnê de lançamento do filme. “Não se trata de um blockbuster de verão — o tipo de produto que já saturou o mercado. Este filme resulta de uma paixão.”

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Paixão antiga

Aos 10 anos, Besson, hoje com 58, lia as histórias em quadrinho da revista parisiense “Pilote”. Adorava uma saga espacial ambientada no século 28 e protagonizada pelo major Valerian e a sargenta Laureline, agentes do espaço-tempo que viajam em missões a serviço do Império Galáctico, um governo nada americanizado: aberto e inclusivo, permite a livre circulação de mercadorias e seres de todos as galáxias. “Esse quadrinho humanista me fez decidir a fazer filmes”, afirma Besson. Como ele queria que seu primeiro filme fosse sobre Valerian, aproximou-se dos quadrinistas. “Só que o visual era tão repleto de detalhes, imaginação e excentricidades que não havia condições técnicas de filmar a história.”

Besson se diz fascinado até hoje por quadrinhos e ficção científica. Sua cinematografia, iniciada em 1981, comprova a afirmação e conta com sucessos, de “Nikita” (1990) a Lucy” (2014), passando pelo suspense “O Quinto Elemento” (1997), baseado na graphic novel de Jean Giraud e Jean-Claude Mèzière (de “Valerian”). A crítica americana chamou-o de “o melhor e o pior blockbuster de verão de todos os tempos”. Obteve um faturamento recorde de US$ 263 milhões para um orçamento enxuto de US$ 90 milhões — bem ao contrário de “Valerian”.

A parceria com Mézière serviu como teste inicial paracriar “Valerian”.“A história inspirou George Lucas em ‘Star Wars’ e James Cameron em ‘Avatar’”, afirma Besson. “Eles experimentaram processos que uso agora e antes eram inviáveis.”

Para materializar seu projeto de acoplar cultura pop, quadrinhos e futurismo, Besson revezou estadas em Paris e Los Angeles. Ele se baseou em uma história publicada na “Pilote” em 1971. Em nome da fidelidade à HQ original, contratou as três empresas mais avançadas em efeitos visuais: a Weta Digital, Industrial Light & Magic e a Rodeo FX. “Das 3 mil sequências do filme, 2.500 foram simuladas digitalmente”, diz Besson. “Com isso gastei quatro anos da minha vida. Mesmo que considerem o filme criativo demais, ou por isso mesmo, valeu a pena.”

HQ inspirou “Star Wars”
Os autores de “Valerian”, de 1967, criaram situacões parecidas com as da saga de George Lucas, de 1977

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O desenhista Jean-Claude Mézière e o roteirista Pierre Christin criaram os esboços da HQ “Valerian” em 1965 em Salt Lake City. A história começou a sair na revista “Pilote” em novembro de 1967 e se prolongou até 1985. Foram 23 aventuras que, reunidas em três álbuns, venderam 2,5 milhões de exemplares e continuam a se popularizar. Dois volumes acabam de sair no Brasil. Em 1977, ao estrear “Star Wars”, a dupla descobriu que o diretor George Lucas havia se baseado em “Valerian”. Além do império intergaláctico análogo ao de “Valerian” e dos trajes mínimos da Princesa Leia parecidos com os de Laureline (acima), há monstrinhos simpáticos, um bar de ETs amistosos que bebem e jogam pôquer com os humanos, e Darth Vader, um líder que oculta o rosto desfigurado sob um elmo, como os membros da seita dos sábios de “Valerian”. “Todo criador se alimenta de influências”, afirma Christin. “George Lucas não foi diferente.”