Maria Eduarda Alves da Conceição morreu enquanto jogava bola no pátio da escola municipal Daniel Piza, em Acari, bairro pobre da zona norte do Rio de Janeiro. Ela foi alvejada por cinco tiros de fuzil 7.62, arma usada por Policiais Militares. Tinha 13 anos e o sonho de se tornar jogadora profissional de basquete. Como uma garota correndo atrás de uma bola pode estar na mira de balas de fuzil da polícia? Essa questão, ao mesmo tempo inexplicável e injustificável, indignou o Brasil – e repercutiu também fora do País. “Minha filha balançou o mundo”, disse à ISTOÉ Rosilene Alves Ferreira, mãe de Maria Eduarda. “Mas não era como ela sonhava”, completou, cabisbaixa, lembrando que a menina já havia acumulado uma coleção de medalhas por seu êxito no esporte que tanto gostava. A tragédia se repetiu quatro dias depois, quando Hosana de Oliveira Sessassim, também de 13 anos, morreu no mesmo bairro, mais uma vez em consequência de um tiro que não era para ter sido disparado. A bala partiu da arma que estava sendo manuseada por um traficante próximo.

VÍTIMA Maria Eduarda, atingida por tiros de fuzil enquanto jogava basquete na escola: morte inaceitável
VÍTIMA Maria Eduarda, atingida por tiros de fuzil enquanto jogava basquete na escola: morte inaceitável

Longe de serem casos isolados, as mortes das duas adolescentes engrossam uma das estatísticas mais terríveis da violência urbana, um fenômeno em que o Brasil ocupa vergonhosa posição de destaque mundial: a bala perdida. Que, de perdida, nada tem. Partindo de disparos feitos a esmo, normalmente em confrontos entre bandidos e policiais, projéteis sem um alvo específico acabam encontrando corpos inocentes para executar. Muitos são de crianças e adolescentes, que representam 37% das 98 mortes por esta causa no País entre 2014 e 2015. Os dados são do último levantamento feito pelo Centro Regional das Nações Unidas para a Paz, Desarmamento e Desenvolvimento na América Latina e Caribe (leia quadro). O Brasil lidera esse tétrico ranking entre os 27 países pesquisados.

“Não existe bala perdida. Existem balas prováveis e improváveis. No Brasil, é contra jovens negros e pobres”, afirma o sociólogo João Alexandre Peschanski em um texto publicado na coletânea “Bala Perdida” (Boitempo). O pesquisador Antonio Carlos Blanco, fundador da ONG Rio da Paz, concorda. “De modo geral, as vítimas são pobres, muitas crianças de comunidades carentes”.

Escolas blindadas

Foi exatamente esse o destino de Kamylli Coutinho dos Santos, 12 anos. Quando sua mãe entrou no Instituo Médico Legal, no Rio de Janeiro, no dia 22 de abril do ano passado, para fazer o reconhecimento do corpo, se deparou com a cena mais hedionda de sua vida. “Ela tinha um buraco muito grande na testa, tinha gaze dentro. Horroroso. A bala, ponto 40, atingiu a nuca, atravessou a cabeça e saiu pela testa dela. Levou junto 60% da massa encefálica”, disse Karen Coutinho. Aos prantos, a mãe se aproximou e sussurrou ao ouvido da menina: “Você continua sendo a minha linda, viu?”. Como ela, muitas mães, pais, irmãos e amigos de vítimas se desesperam diante de uma morte tão injusta.

Nas últimas semanas, a revolta tomou conta de comunidades afetadas pela violência e chegou a produzir ideias estapafúrdias, como a do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (PRB), que prometeu blindar muros e paredes de escolas da rede municipal – uma medida que comprova a falência da segurança pública na cidade. “Isso não é solução”, diz a professora de criminologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e secretária-executiva do Instituto Carioca de Criminologia, Vera Malaguti. “Não há sentido em uma política de segurança que produz milhares de mortos, sem resultados”, afirma, referindo-se à política de combate às drogas que, segundo ela “promove uma matança generalizada”.

Das balas perdidas, ou melhor, “execuções achadas”, já que incidem sempre sobre o mesmo tipo de vítima, não escapam sequer bebês. Em janeiro, Sofia Clara Braga, então com 2 anos, brincava em uma lanchonete quando sua vida foi ceifada, também devido a intensa troca de tiros entre policias e assaltantes, no bairro de Irajá, também na zona norte do Rio de Janeiro. “Mataram meu anjo”, escreveu a mãe em rede social. Em São Paulo, no mês passado, Ana Victória Rodrigues, de 6 anos, foi baleada na zona leste durante confronto entre policiais militares e suspeitos de um assalto. Ela sobreviveu. Mas Amanda Fernão Martinho, de 10 anos, não. Ela estava no carro dos pais quando um tiro fatal na cabeça tirou sua vida, no Ipiranga, zona sul da capital paulista.

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Um dos estudos sobre esse fenômeno, baseado no cruzamento de dados da Polícia Civil do Rio de Janeiro, mostra que uma criança é atingida por bala perdida a cada duas semanas no Estado. O dado remete a locais de guerra ou campos de extermínio. Por isso, embora o título de região com maior número de homicídios seja do Nordeste, a capital da “execução achada” é o Rio de Janeiro. “Por abrigar quatro facções criminosas – Comando Vermelho, Terceiro Comando, Amigos dos Amigos (ADA), e uma junta de milicianos – tudo indica que é o lugar onde mais se morre desse jeito em meio a tiroteios”, diz Carlos Santiago, fundador do instituto Gabriela Sou da Paz, que se dedica a ajudar vítimas e lutar contra as guerras urbanas. Ele é pai da adolescente que dá nome à ONG, morta há 14 anos devido a um disparo numa estação de metrô na Tijuca, zona norte da cidade.

“Eu sou uma bala perdida, uma bala desgraçada

Inofensiva, feito uma criança abandonada

Eu estou sendo injustiçada

Não sou culpada

Se eu tô aqui é porque eu fui disparada

O dedo me pôs na arma, puxou o gatilho, então porque que eu sou responsabilizada pela morte?”

Trecho de “Bala Perdida”, música de Gabriel o Pensador

Vidas ceifadas precocemente
Pelo menos 10 vítimas de disparos de arma de fogo em áreas probres do Rio de Janeiro no útimo ano eram crianças ou adolescentes

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Olho por olho?

Uma das razões por trás da alarmante estatística de execuções parece estar na crença brasileira de que “bandido bom é bandido morto”. Um levantamento feito pelo instituto de pesquisas Datafolha no ano passado concluiu que metade da população do País concorda com essa afirmação. Na semana passada, porém, a pesquisa “Olho por Olho? O Que Pensam os Cariocas Sobre ‘Bandido Bom é Bandido Morto’”, realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CeSeC) da Universidade Candido Mendes, mostrou que 60% dos entrevistados rejeita a ideia. Ainda assim, a solução para reduzir a matança generalizada pela criação de uma nova política de segurança pública.


O sociólogo Ignacio Cano, coordenador do Laboratório e Análise da Violência, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), entende que onde há tiroteios frequentes sempre haverá tiros em alvos não intencionais. E sugere planejamentos mais estruturados para minimizar tragédias como a da bala perdida. Uma delas seria promover um pacto entre grupos criminosos e policiais para não acontecer confrontos perto de escolas em horários de funcionamento. “Traçar um raio em torno da escola e pactuar”, explica. A organização humanitária Cruz Vermelha fez um projeto experimental neste sentido, que precisaria ser continuado para dar resultados. O mais importante, segundo Cano, é criar um plano nacional de redução de homicídios. Aí sim, as crianças e adolescentes deixariam de ser executadas.

Letalidade certeira
O Brasil lidera o último ranking de balas perdidas, feito em 27 países da América Latina e Caribe, entre 2014 e 2015:

 DESOLADOS Rosilene Ferreira e Antônio Alfredo, pais de Maria Eduarda, morta em Acari
DESOLADOS Rosilene Ferreira e Antônio Alfredo, pais de Maria Eduarda, morta em Acari

Foram estudados 741 notícias desse tipo de crime, envolvendo 826 pessoas
Dessas:

371 morreram e
455 ficaram feridos

197 casos aconteceram no Brasil
e envolveram 213 vítimas

98 morreram

37% eram crianças e adolescentes

20% tinham idade entre 18 e 29 anos

30% dos casos não têm causa definida

24% são causados por traficantes

16% acontecem em tentativas de roubo

15% se devem a briga de gangues


19% são devido à guerra entre polícia e criminosos

No Rio de Janeiro, entre janeiro de 2015 e início de abril: 89 crianças e adolescentes foram vítimas 20 morreram


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