Ele não culpa o público por ainda ser associado ao médico sarcástico que o projetou mundialmente na série “Dr. House’’: “Eu mesmo não consigo esquecê-lo”, diz o ator britânico Hugh Laurie, 57 anos. Pelo papel, chegou a ganhar mais de US$ 400 mil por episódio — e figura no “Guinness World Records” como o ator mais assistido da TV em 2012. Foram oito temporadas da série que ainda pode ser vista no Brasil pelo canal pago Universal. Em 2016, ele atuou em “The Night Manager”, minissérie da BBC aqui exibida na grade do canal AMC. Por sua atuação como contrabandista de armas, Laurie obteve uma indicação ao Globo de Ouro de melhor ator coadjuvante. Desde outubro, quando ganhou a sua estrela na Calçada da Fama, em Hollywood, o ator interpreta novamente um médico. Na série “Chance”, exibida nos EUA por um serviço de streaming de vídeo, ele é um neuropsiquiatra forense. Nesta entrevista, Laurie diz como House marcou sua vida, fala da paixão por música (ele também é cantor) e diz que publicará um novo livro quando ficar careca.

Sente falta de House?

Não muito. Até porque ele continua comigo o tempo todo. Penso muito em House. Às vezes, eu me lembro de cenas com ele. Outras vezes, fico imaginando o que ele diria em uma determinada situação da minha vida. Quando House passa pela minha cabeça, ele inevitavelmente me faz rir. House estará comigo até a minha morte.

Alguma vez se sentiu tentado a usar algumas das falas afiadas de House na vida real?

Se eu conseguisse me lembrar delas (risos). Não recordo as falas ácidas e muitos menos os diálogos médicos. Apaguei tudo da memória. Eu mal consigo recordar para que serve a aspirina (risos). Só George Clooney consegue essa façanha.

Como assim?

Em fevereiro, estive com George Clooney no programa “Jimmy Kimmel Live”, nos EUA. A ideia era promover um reencontro do elenco de “Plantão Médico”, em que ele reviveria seu personagem, Dr. Ross. Para ficar engraçado, fui convidado para participar, como House. O mais impressionante é que, nos intervalos, percebi como George realmente se lembra de muitas de suas falas, inclusive as de linguagem técnica médica. Ele repetia muitos de seus diálogos longos, cheios de jargões da profissão. Vale lembrar que “Plantão Médico” foi gravado muito antes de “House”. A memória de George é incrível. Já a minha…

Mesmo interpretando Dr. House por oito anos, você não aprendeu nada de medicina?

Não. O irônico é que, levando em conta todo o tempo que eu passei interpretando House, poderia ter me formado em medicina (risos).

Como explica o seu sucesso ao fazer tipos tão narcisistas, seja como Dr. House ou Richard Roper, o milionário britânico de “The Night Manager”?

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Prefiro acreditar no caráter sedutor desses personagens. Do contrário, teria de me perguntar se o narcisista não sou eu (risos). Esses tipos têm o seu charme, por terem muita autoconfiança, por se comportarem mal e por se colocarem acima das leis. É a mesma atração exercida pelo Diabo. Não há como negar o seu apelo. Para completar, esses caras ainda ganham as melhores falas nas séries e nos filmes. Se não for isso, eu simplesmente estou disfarçando o fato de ter ficado muito frustrado por não interpretar Jonathan Pine, o papel do mocinho que caiu nas mãos do meu colega Tom Hiddleston em “The Night Manager”.

Você queria o papel do agente infiltrado que descobre os negócios escusos do magnata?

Sim. Há mais de 20 anos, quando li pela primeira vez o romance “The Night Manager”, do autor britânico John Le Carré, eu me imaginei na pele de Jonathan Pine, que consegue se infiltrar na gangue do milionário. Mas naquela época eu ainda não tinha começado a perder o meu cabelo… (risos). Como o tempo passou, fui obrigado a assistir Tom Hiddleston bancar o herói viril, o que foi muito irritante.

Como encarou o fim de “Dr. House”, depois de ter se dedicado tantos anos à série?

Apesar de gostar de trabalhar, fiquei um tempo sem atuar por também gostar de não fazer nada (risos). Fiz uma pausa, passando uma temporada, de 2013 a 2014, excursionando pelo mundo para fazer outra coisa que amo, cantar e tocar blues (Laurie chegou a se apresentar no Brasil com sua banda, em março de 2014). Pensava seriamente em me aposentar como ator. Foi bom ter me dedicado à música depois do final da série. Assim, não tive nenhum período de luto por House.

A música era uma paixão desde a infância. Por que adiou a carreira musical?

Aos seis anos, eu comecei a fazer aulas de piano. Com o tempo, fui aprendendo a tocar violão, guitarra, gaita, bateria e saxofone. Antes da minha realização como ator, talvez eu ainda não tivesse a confiança necessária para gravar os meus álbuns (Laurie lançou os discos “Let Them Talk”, em 2011, e “Didn’t It Rain”, em 2013). De certa forma, o ator ganha a vida colocando máscaras. Já o músico, precisa aprender a tirá-las, expondo-se muito mais.

Como é trabalhar para o Hulu, serviço de streaming de vídeo com orçamento e alcance limitados?

O dinheiro não é o mesmo, obviamente. Do ponto de vista da produção, no entanto, não há muita diferença. O que nós, atores, fazemos é nada mais que misturar tintas, seja para fazer uma pintura a óleo ou usar outra técnica. A maior vantagem para o ator é o trabalho mais compacto, um grande atrativo para os profissionais que não querem se comprometer com seriados intermináveis na TV. Isso explica por que muitos atores estão contentes com o streaming, migrando para lá.

“Chance” pode ser o novo “House”?

“Dr. House” chegou a ter temporadas com 24 episódios cada, o que foi uma loucura na minha vida. Já “Chance” foi concebido em duas temporadas de dez episódios cada. Não me vejo mais fazendo o mesmo personagem por tanto tempo.

Como ficou a sua vida familiar durante as gravações de “House”, com você morando nos EUA e sua família na Inglaterra?

Minha mulher (a administradora teatral Jo Green) e meus filhos me visitavam em Los Angeles. Nós decidimos que a família inteira não se mudaria para os EUA pelo fato de meus filhos já serem grandes naquela época (Laurie é pai de Charlie Archibald, 28 anos, de William Albert, 25, e Rebecca Augusta, 23). Se eles ainda fossem crianças pequenas, não seria um problema tão grande trocar de escola, de amigos e de atividades esportivas. Mas a minha caçula já tinha 11 anos quando a série começou. Acabamos passando muito tempo separados, o que foi difícil. Eu me senti como se eu tivesse me alistado na Marinha.

Você foi educado em Eton, uma das escolas mais caras da Inglaterra e do mundo. Como era sua vida de estudante?

Naquela época eu não tinha consciência disso. Até porque nós não falávamos de riqueza na minha casa, ainda que pudéssemos receber de vez em quando famílias mais abastadas, por conta dos amigos de meu pai. Por ser médico, meu pai nunca nos incentivou a dar tanta importância ao lado material.

Não é irônico que você tenha sido projetado mundialmente no papel de um médico?

Sim. De certa maneira, todos os homens buscam ser versões de seus pais, missão na qual acabam falhando. No meu caso, eu apropriadamente me tornei um médico falso (risos).

Você hesitou em interpretar novamente um médico, em “Chance”?


Não. Embora o território seja familiar, por lidar com medicina, em particular a neuropsiquiatra, o personagem Eldon Chance é o oposto de House. Enquanto House sabia exatamente o que fazia e manipulava todo mundo o tempo todo, Chance é um cara vulnerável. Ele é um pai que lida com a rejeição da filha, por conta de seu divórcio recente. Sua profissão ainda o coloca em contato com a violência e a corrupção na polícia, algo que o perturba. Rodada em San Francisco, a nova série ainda tem uma atmosfera totalmente diferente, beirando o clima hitchcockiano, na linha do filme “Um Corpo Que Cai” (1958). Por ser um thriller psicológico, confesso ter me sentido um pouco como James Stewart.

Já pensou em voltar a fazer comédia, como no início de sua carreira?

Durante uma participação que fiz na série “Vice”, na quarta e na quinta temporadas, pude resgatar o meu lado cômico. É como voltar a tomar um remédio já usado anteriormente. Sempre falo com o meu amigo Stephen Fry para retomarmos o programa de esquetes que fizemos por um tempo na TV inglesa (“A Bit of Fry & Laurie”, lançado em 1987). Provavelmente falaremos disso para sempre. O problema é que Stephen é tão inútil quanto eu, no sentido de planejar e executar. A ideia é revisitar o antigo programa, contando piadas enquanto tocamos piano usando nossos ternos de fim de semana. Já temos o piano e os ternos. Mas faltam as piadas.

Escrever um novo livro está em seus planos para o futuro?

Eu já deveria ter escrito (risos). Quando lancei o meu primeiro romance (o thriller “The Gun Seller”, de 1996, que foi traduzido para 28 idiomas), a editora encomendou outro imediatamente. Só que não consegui escrever ainda. Talvez seja algo que eu deixe para fazer mais para frente, quando todo o meu cabelo já tiver caído (risos).


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