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Se o maior nadador da história do Brasil não estará nos Jogos Olímpicos do Rio, é também por “culpa” de um mineiro abusado, que não só teve o atrevimento de desafiar o ídolo Cesar Cielo na disputa por um lugar nos 50 m livre como levou a melhor sobre o consagrado campeão. Agora que Ítalo Manzine tomou gosto pela glória, ele diz que surpreender o País foi coisa pouca – e planeja um golpe muito mais ambicioso: pegar o mundo inteiro de surpresa ao pendurar no pescoço uma medalha olímpica da prova mais veloz da natação.

Aos 24 anos, Ítalo disputará no Rio de Janeiro a sua primeira Olimpíada e terá como um de seus concorrentes o compatriota Bruno Fratus, quarto colocado nos 50 m livre dos Jogos de Londres-2012 e dono do melhor tempo da seletiva brasileira. Nada parece estar a favor do atleta do Minas Tênis Clube, mas nada parecia estar a seu favor na disputa com Cielo. E, contra todos os prognósticos, saiu vencedor. O papel de azarão cai bem a Ítalo, que parece vestir à perfeição o clichê de mineiro quieto, mas eficiente.

Não é nenhum exagero dizer que Ítalo nasceu para nadar em alta velocidade. Desde que se entende por gente, ele nutre paixão incontrolável pela água, o que certa vez o levou a se jogar com toda a vontade em uma piscina logo depois da mudança da família de Belo Horizonte, sua cidade natal, para a pequena Paraguaçu, município de pouco mais de 20 mil habitantes localizado no sul de Minas Gerais. Detalhe: o menino tinha apenas quatro anos de idade. Assim que se recuperaram do enorme susto, os pais do futuro atleta olímpico, William e Silvana, decidiram que era melhor colocá-lo em uma escolinha de natação.

O Ideal Clube de Paraguaçu tornou-se, então, seu segundo lar. “Sempre adorei as provas de velocidade, os tiros curtos”, diz o nadador. “Quando eu era garoto, tentaram me fazer nadar provas como os 200 m livre, mas, para ser sincero, achava aquilo entediante. Eu gosto mesmo é de velocidade.” Ítalo passou a infância inteira competindo e ganhando medalhas em torneios pelo sul de Minas, mas também mantinha o amor pelas águas fora dos torneios. “O pai dele tinha um sítio com piscina e, quando a gente ia para lá, ele era o primeiro a pular na água, mesmo se o dia estivesse frio”, conta o amigo de infância Willian Pereira, que, ao contrário de Ítalo, jamais saiu de sua diminuta cidade, onde trabalha como agrônomo.

Ítalo só deixou de ver a natação como passatempo em 2008, quando o adolescente de 16 anos se encantou com as façanhas de um atleta que, ironicamente, tornou-se algum tempo depois o seu mais importante adversário. “Foi assistindo aos Jogos de Pequim que eu decidi que queria ser um atleta olímpico. Eu me inspirei na vitória do Cielo nos 50 m, assim como nos triunfos do Michael Phelps.”

Antes de chegar a Cielo, porém, o mineiro teve de passar por inúmeras dificuldades. A começar pelo fato de só ter decidido levar a natação a sério de verdade aos 16 anos, muito mais tarde do que o normal. Ele reconhece que esse início tardio é a explicação para alguns dos defeitos técnicos que ainda luta para corrigir. Por volta de 2010, seus resultados não eram bons e, por causa disso, a mãe imaginou que seria melhor ele abandonar o esporte para se dedicar aos estudos. Os dois chegaram, então, a um acordo: Ítalo teria um ano para melhorar seu desempenho. Do contrário, seria fim de linha. A própria Silvana conta o que aconteceu na sequência: “Naquele ano, o meu filho se dedicou aos treinos como nunca havia feito e os resultados apareceram, foi uma explosão. Aí ficou difícil deixar a natação”.

Àquela altura da vida, o nadador já tinha voltado a morar em Belo Horizonte, onde defendia o Mackenzie. Em 2011, tornou-se o quarto melhor do Brasil nos 50 m livre e já era considerado por treinadores e jornalistas especializados uma promessa das piscinas. Para evoluir ainda mais, decidiu voar para longe das Minas Gerais. Duas opções se apresentaram a ele: o Pinheiros (SP), clube mais tradicional do País nos esportes olímpicos, e a Universidade de Louisville, nos Estados Unidos. Por razões sentimentais, optou pela primeira alternativa. “Nos Estados Unidos, eu não teria como ver minha família, ficaria muito isolado, e isso me fez escolher ir para São Paulo”, diz.

Na maior cidade do País, as coisas não saíram conforme o planejado por Ítalo e seus familiares. Para ele, a distância ainda era grande demais. E o mineiro nunca se acostumou à vida na capital paulista. “Por causa do trânsito, eu ficava sempre preso a um pedaço da cidade. E ainda havia a saudade da família”, afirma. “De qualquer maneira, foi um grande aprendizado, pude treinar com atletas de alto nível no Pinheiros.” Além da experiência de nadar ao lado de feras como Bruno Fratus, ele ganhou nos dois anos de aventura paulistana o apelido que carrega até hoje, com indisfarçável orgulho: “Ligeiro”.

Ao deixar São Paulo, em 2014, o velocista retornou a Belo Horizonte, mas não ao Mackenzie. Era chegada a hora de defender a agremiação mais laureada da natação mineira, o Minas Tênis Clube, e de treinar ao lado de Cesar Cielo. O período de trabalho com o recordista mundial dos 50 m e 100 m livre durou apenas alguns meses, mas deixou em Ítalo marcas profundas. Ele faz questão de dizer que Cielo é um sujeito humilde, divertido e prestativo, e que as dicas que recebeu dele foram muito importantes para o crescimento no esporte.

No Minas, Ligeiro conheceu outro personagem importantíssimo: o experiente treinador australiano Scott Volkers. Ítalo confessa que o fracasso da passagem pelo Pinheiros o deixou desanimado, tanto que a mãe voltou a cogitar a possibilidade de uma despedida das piscinas, agora para se dedicar integralmente ao curso de Administração de Empresas no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG), que ele leva aos trancos e barrancos. Com a ajuda de Volkers, no entanto, o nadador recuperou a força e abandonou a faculdade, ao menos temporariamente. “O Scott é um treinador sensacional. Foi ele quem me fez voltar a acreditar que era possível o sonho olímpico”, afirma Ítalo.

Com o moral novamente lá no alto, o mineiro se preparou para a tarefa mais complicada de sua vida: conquistar um lugar na Olimpíada do Rio. Na verdade, complicada é uma palavra que aqui parece suave demais. Quem acompanha natação considerava que era uma missão impossível, mesmo. Afinal, como Ítalo se classificaria para os Jogos se o Brasil só dispõe de duas vagas nos 50 m livre e elas pareciam já reservadas para Cielo e Fratus, dois dos melhores do mundo na distância? Com a óbvia exceção do próprio nadador e de seus familiares e amigos, era dificílimo encontrar alguém disposto a apostar nele.

O apelido de “Ligeiro” foi ganho em São Paulo, onde Ítalo treinou ao lado de Bruno Fratus, hoje o melhor velocista do País
O apelido de “Ligeiro” foi ganho em São Paulo, onde Ítalo treinou ao lado de Bruno Fratus, hoje o melhor velocista do País

Ítalo está acostumado à desconfiança. Por ter 1,80 m, altura considerada insuficiente para as provas de velocidade, sempre foi visto com boa dose de desdém pelos próprios nadadores. Quando, no fim de 2015, no Torneio Open, disputado em Palhoça (SC), conquistou de modo provisório uma das duas vagas olímpicas, ao lado de Fratus, pouca gente deu importância ao feito. Era certeza que Cielo recuperaria a boa forma. A decisão foi marcada para o mês de abril, no Troféu Maria Lenk, no Rio de Janeiro. Justamente na piscina que receberá as provas dos Jogos Olímpicos.

Foi um dia dramático. Pela manhã, na eliminatória, o recordista mundial superou o índice de Ítalo e se tornou dono de uma das vagas. Mas seria preciso confirmá-la à tarde, na final. Aí se deu aquela que já é considerada uma das grandes zebras da história da natação. Conforme o esperado, Bruno Fratus ganhou a prova, com o tempo de 21s74, mas o segundo colocado não foi Cielo. Com 21s82, Ítalo superou o ídolo e rival por sete centésimos e garantiu a presença em sua primeira Olimpíada. “Foi uma sensação quase inexplicável, um momento único ver que tudo o que ele lutou valeu a pena. Ganhar do Cesar Cielo foi uma consequência de tudo o que ele havia feito antes”, diz a namorada do mineiro, a também nadadora Roberta Martins. “Ele sempre falava que iria para a Olimpíada nos 50 m livre. Afirmar isso em um país que tem Cesar Cielo e Bruno Fratus é complicado, muita gente ria dele, mas ele sempre acreditou”, conta um dos grandes amigos do Ligeiro no esporte, Henrique Martins, classificado para os Jogos nos 100 m borboleta e no revezamento 4 x 100 m medley.

A mesma autoconfiança que o colocou nos Jogos é uma das mais importantes armas do atleta na busca por uma medalha no Rio. Ligeiro colocou na cabeça que tem potencial para ganhar os 50 m livre. Nada o convence do contrário. “Meu foco está na medalha. Para mim, ir à final é obrigação”, afirma. Só ele e mais alguns poucos acreditam que esse seja um projeto viável. Sem Cielo, as atenções da mídia e do público do Brasil vão se voltar para Fratus, apontado por todos como um dos únicos velocistas do planeta com cacife para fazer frente ao atual campeão olímpico e mundial dos 50 m, o francês Florent Manaudou. Mas isso não é suficiente para abalar a confiança de Ítalo Manzine. Ele sabe que, durante a Olimpíada estará bem menos pressionado do que Fratus. E lembra que o próprio Manaudou era praticamente desconhecido quando ganhou a medalha de ouro nos Jogos de Londres-2012. “Nos 50 metros livre, os oito competidores são favoritos, não dá para descartar ninguém”, diz o atleta brasileiro.

O tempo obtido no Maria Lenk colocou Ítalo na sétima colocação do ranking mundial da prova (até o fechamento desta edição), o que faz dele naturalmente candidato a ir à final olímpica. Para chegar ao campeonato mais importante de sua vida no auge da forma física, Ligeiro está disposto a fazer qualquer sacrifício. Por ordem da nutricionista do Minas, aboliu da dieta os doces que tanto ama. “Aqui em casa, só entra o que a nutricionista deixa”, diz a mãe, Silvana. Separada do pai de Ítalo, a professora de matemática mora com o filho único em Belo Horizonte. Ela conta que o desejo de comer doces é tão intenso que Ítalo, quando vai à casa da avó materna, costuma abrir um pote de Nutella apenas para passar alguns segundos sentindo o cheiro da guloseima. Colocá-la na boca está fora de cogitação.

Caso conquiste a medalha na Rio-2016, Ítalo vai se transformar em um dos principais nomes da natação do Brasil e finalmente começar a ganhar dinheiro com o esporte. Até agora, segundo seu pai, isso não foi possível. “Ainda não existe uma valorização justa do Ítalo e esperamos que a situação mude depois da Olimpíada. Por enquanto, não mudou nada”, diz William, que busca parceria com uma empresa de marketing esportivo para profissionalizar a gestão da carreira do velocista. Além de melhorar a situação financeira, um bom desempenho no Rio daria a Ítalo o status de lenda vida de Paraguaçu, cidade que não está acostumada a ver seus filhos (mesmo os adotivos, como o nadador) ganhar fama pelo mundo.

Os moradores do pequeno município do sul de Minas esperam com enorme ansiedade pelo começo do torneio de natação dos Jogos. “O orgulho aqui é muito grande, o povo fala disso a todo instante. Tem gente que ainda nem consegue acreditar que haverá um representante da cidade na Olimpíada”, relata Willian, o amigo de infância. “A gente já está preparando uma grande recepção para o Ítalo depois dos Jogos. Isso vai acontecer independentemente do resultado. E a Câmara Municipal vai dar a ele o título de cidadão honorário”, revela Sydney Paulo da Silva, o Sidão, primeiro técnico do nadador e atual secretário de Esporte e Lazer do município.

Para dar à cidade em que cresceu a mais inesquecível festa de sua história, Ítalo Manzine treina como louco e abre mão dos prazeres da vida sem pensar duas vezes. Quietinho, Ligeiro se prepara para tentar roubar a cena nos Jogos Olímpicos do Rio e evitar que a torcida brasileira sinta saudades de Cesar Cielo, astro condenado a ver o evento pela tevê, invertendo os papéis de 2008. Desta vez, o ídolo é quem vai assistir ao fã.

RAIO X

Nome: Ítalo Manzine Amaral Duarte Garófalo

Idade: 24 anos (13/03/1992)

Local de nascimento: Belo Horizonte/MG

Clube: Minas Tênis Clube

Principais resultados nos 50 m livre:

2º lugar no Troféu Maria Lenk (2016)

2º lugar no Torneio Open (2015)

2º lugar no Troféu José Finkel (2015)

2º lugar no Troféu Open (2014)

Recorde pessoal: 21s82