Todos os dias, o escritor argentino Alberto Manguel rende-se a uma rotina que lhe alimenta o espírito: ler ao menos um capítulo de A Divina Comédia, poema de viés épico e teológico escrito por Dante Alighieri no século 14. “Sempre há uma nova descoberta”, conta o autor que, apesar da extrema proximidade com os clássicos, só decidiu ler integralmente a obra-prima italiana há 12 anos. E foi essa descoberta que o incentivou a escrever Uma História Natural da Curiosidade, livro em que mapeia os textos que o inspiram como leitor. E o ponto de partida são 17 questões propostas por Dante na Divina Comédia.

Manguel é um autor de múltiplas vivências – nascido em Buenos Aires em 1948, viveu em Israel e no Taiti até se mudar, nos anos 1980, para Toronto, onde se tornou cidadão canadense. Aprendeu a ler por volta dos 3 anos e nunca mais parou. Quando adolescente, leu em voz alta, durante anos, para Jorge Luis Borges, que ficara cego. Viveu em um presbitério construído no século 16, que comprou para instalar sua biblioteca de 30 mil livros, em um vilarejo medieval no sul da França. E atualmente é diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, mesmo cargo ocupado por Borges.

Em São Paulo, Manguel vai participar de um debate com Robert Darnton, na terça, 30, no Sesc Vila Mariana, evento que inicia a festa dos 30 anos da Companhia das Letras. E, no dia 31, estará na Bienal do Livro de São Paulo. Por telefone, ele conversou com a reportagem.

Quando decidiu que a curiosidade era tema para um livro?

A curiosidade como parte do ser humano é uma característica essencial que nos permite sobreviver para imaginar as experiências que nos constroem e nos possibilitam entender o mundo que contém nossa identidade. Não creio que seja apenas o tema desse livro, mas de toda a minha obra. Mas, depois de ler Dante, pensei em fazer uma espécie de cartografia do mundo intelectual dantesco por meio das perguntas que ele faz e que refletem nossa inquietação hoje. A lista de 17 perguntas (que poderiam ser mais) reflete nosso inconformismo e dá forma a questões milenares.

A curiosidade implicaria uma ação transgressora?

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Com certeza. Nossa sociedade está construída sobre afirmações. Nosso contexto social representa uma das regras que constroem a muralha simbólica do lugar onde podemos viver juntos sob uma certa coerência. O indivíduo, para que essa sociedade continue viva, tem de questioná-la. Se há leis, elas devem mudar ao longo do tempo. E é a curiosidade do homem que pode alterá-las. Desde sempre, desde que as muralhas das sociedades eram verdadeiras, reais, o indivíduo queria saber o que havia do lado de fora para comparar com o que dispunha dentro e que caracterizava sua forma de viver. A curiosidade permite incorporar algo que não é real graças à imaginação.

É a vontade de saber mais que possibilita, por exemplo, a descoberta de um novo planeta como o anunciado recentemente, não?

Sempre soubemos que nosso entendimento é limitado pelos sentidos, que reduzem o alcance da nossa busca. Mas, graças à nossa imaginação, podemos ver o que não está adiante, ouvir algo no que parece ser silencioso. Há campos imensos aos quais não temos acesso, mas construímos instrumentos para estender o alcance dos nossos sentidos. E a descoberta desse planeta é obviamente uma extensão dos nossos olhos. Marshall McLuhan, quando escreveu seu famoso livro O Meio É a Mensagem, já dizia que os instrumentos são uma extensão dos homens, ou seja, o carro é uma continuação das nossas pernas.

Em seu livro, o senhor promove uma interessante conexão entre a Antiguidade e o mundo contemporâneo, além de montar encontros originais como Kafka e Platão, ou Confúcio e o filósofo pré-colombiano Netzahualcóyotl.

Esquecemos que as definições temporais e espaciais são convenções que foram criadas para facilitar o pensamento da comunicação. No universo, não há tempo nem espaço. Essas etiquetas são categorias que nos permitem viver nesse mundo. Mas, acima delas, está a rede que comunica as distintas partes e que fazem com que Platão responda às nossas inquietações atuais ou que encontremos referências a Alice no País das Maravilhas ou a Sêneca, Dante e Kafka em nossa vida cotidiana.

Vivemos em um mundo marcado pelas certezas, oferecidas pela comunicação e pela publicidade. Mesmo nas escolas, os alunos são educados a aceitar respostas e a não fazer perguntas. O que isso traz de prejuízo?

É um problema recorrente. No fim da Idade Média, o método de ensino, que era escolástico, afirmava que os conceitos clássicos, autoritários, eram os corretos e tinham de ser apreendidos pelo estudante para que ele descobrisse quais eram as opiniões válidas na sociedade. Só com o Humanismo é que se começou a questionar esse sistema e a se discutir que a base do conhecimento autoritário é apenas uma base sobre a qual construímos os relacionamentos interiores. Essa é a diferença entre a literatura, que apresenta perguntas, e o dogma político religioso social, que apresenta certezas.

E o que dizer do uso de religiões, como o islamismo, para fomentar guerras. O que o senhor pensa disso?

Esses extremismos existiram sempre. Hoje, ao ouvirmos falar do extremismo islâmico, nó nos esquecemos de que as religiões católica e protestante tiveram atos de extremismos muito mais pronunciados e durante muito mais séculos. O que nos chama atenção hoje são os atos dos terroristas, mas nos esquecemos convenientemente de que a nossa própria história – sendo cristãos ou judeus – é marcada por atos extremos.

Como é trabalhar na Biblioteca Nacional da Argentina, função já exercida por Borges?

Fui nomeado no fim do ano passado, mas não pude aceitar até junho deste ano. Trabalhei a distância. É uma tarefa difícil, mas excitante. É preciso transformar a biblioteca em um espaço funcional, que compartilhe suas riquezas. Quero fazer um acordo com a Biblioteca Nacional do Brasil. Sobre Borges, ele conferiu uma grande visibilidade à biblioteca, era um local onde gostava de estar.


UMA HISTÓRIA NATURAL DA CURIOSIDADE

Autor: Alberto Manguel

Tradução: Paulo Geiger

Editora: Companhia das Letras (496 págs., R$ 74,90)

Lançamento: Debate com Robert Darnton, Sesc Vila Mariana,

R. Pelotas, 141. 30/8, 20 h. Grátis. Retirar ingresso 1 h antes

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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