SÃO PAULO, 19 JUN (ANSA) – Por Lucas Rizzi – Quatro meses e meio depois da assinatura do acordo entre Itália e Líbia para frear o fluxo migratório no Mediterrâneo Central, o número de deslocados externos que desembarcam em solo italiano continua aumentando em relação a 2016, ano que já havia registrado recorde na entrada dessa categoria de migrantes.
Entre 1º de janeiro e 8h da manhã (horário local) de 19 de junho de 2017, véspera do Dia Mundial do Refugiado, 69.382 deslocados externos chegaram à Itália pelo Mediterrâneo, um crescimento de 23,2% na comparação com o mesmo período do ano anterior.
O acordo entre Roma e Trípoli foi firmado no último mês de fevereiro e prevê que o governo italiano destine recursos financeiros e humanos para treinar e equipar a Guarda Costeira líbia e torná-la capacitada para socorrer migrantes no Mediterrâneo.
Atualmente, a maior parte dos resgates na região é coordenada pelas autoridades italianas e realizada por navios europeus, que precisam necessariamente levar essas pessoas para portos do velho continente. Como a Itália está a poucas centenas de quilômetros da Líbia, acaba sendo a opção mais próxima.
O objetivo do acordo é aumentar o papel de Trípoli nos salvamentos e fazer com que os deslocados externos resgatados sejam levados de volta ao país africano, desestimulando pessoas que pensem em fazer a travessia. Mas não é o que se vê até agora.
Com exceção de janeiro (-15,5%), justamente o último antes do pacto, todos os meses já concluídos em 2017 tiveram altas significativas no número de desembarques em relação ao mesmo período de 2016. E, como acontece em todos os anos, a quantidade cresce mês a mês, acompanhando a elevação das temperaturas no hemisfério norte.
Em fevereiro, 8.981 pessoas completaram a rota entre Líbia e Itália (+134,6%), número que subiu para 10.853 em março (+12,2%), 12.930 em abril (+41,3%) e 22.978 em maio (+15,1%).
Para o professor Gilberto Rodrigues, que dá aulas de relações internacionais na Universidade Federal do ABC, essa situação se deve à reduzida e precária capacidade de implantação do pacto por parte do governo líbio.
“Treinamento de funcionários, como foi previsto e feito em alguma medida, não dá resultados em curto prazo. É preciso de treinamento durante anos”, explica. Também contribui para atrapalhar o acordo a complexa situação política da Líbia, que vive dividida desde a queda de Muammar Kadafi, em 2011, e não tem um governo que represente toda a nação.
O pacto com a Itália foi firmado pelo primeiro-ministro Fayez al Sarraj, chefe de um gabinete de união nacional baseado em Trípoli. Porém Sarraj não é reconhecido por milícias ligadas a Khalifa Ghwell, líder do governo islâmico que comandou a capital entre 2014 e 2016, nem por Khalifa Haftar, general que controla boa parte do leste líbio e representa as forças contrárias ao islã político.
“Esses instrumentos até poderiam ter algum efeito, mas não em curto prazo. E isso falando em tese: só em uma sociedade ou país onde as instituições funcionem com regularidade, estabilidade. A Líbia não é esse país”, afirma Rodrigues.
Inversão de rota – O mês que pode marcar uma inversão de tendência nos fluxos migratórios no Mediterrâneo Central é justamente junho. Entre os dias 1º e 19, 9.182 deslocados externos desembarcaram na Itália, uma alta de 8,7% em relação aos 8.446 do mesmo período do ano anterior.
No entanto, em junho de 2016 inteiro, foram resgatadas 22,3 mil pessoas pelas autoridades italianas. Ou seja, para igualar o número do ano passado, é preciso que mais de 13 mil indivíduos sejam socorridos nos próximos 11 dias.
Parte disso se deve ao fato de a Guarda Costeira da Líbia já estar efetuando suas primeiras operações na região. Na manhã da última sexta-feira (16), 906 deslocados externos foram tirados de seis botes à deriva cerca de sete milhas ao norte da cidade de Sabrata. Segundo a alta representante da União Europeia para Política Externa, a italiana Federica Mogherini, o número de pessoas resgatadas pelo país africano já chega a 16 mil em 2017.
Outras medidas do acordo entre Roma e Trípoli incluem o reforço no combate a traficantes de seres humanos, ações para melhorar as condições de vida em campos de acolhimento líbios, intensificação da repatriação voluntária de migrantes econômicos, que não têm direito a refúgio, e o fortalecimento das fronteiras com Egito, Tunísia e Argélia.
Para Rodrigues, apesar da instabilidade da Líbia, o pacto é uma tentativa da UE de incluir o país africano no combate à emergência migratória e, respondendo a pressões internas, de tentar deslocar o problema para mais longe da fronteira europeia. “Mas é uma equação que se vale de políticas para países estáveis. O cenário no Mediterrâneo pouco mudou porque ele não poderia se alterar diante da falta de Estado na Líbia”, alerta o professor da UFABC. (ANSA)