Quando, nos anos 90, a Operação Mãos Limpas passou a fustigar a classe política italiana envolvida em falcatruas, logo começaram a ser criadas leis para salvaguardar quem foi pego com a “mão na geleia” – expressão usada pelos cidadãos do país da Velha Bota para designar alguém “flagrado em corrupção”. No Brasil, a cada dia se recorre a mais um tipo de tática “salvaladri – ou salva ladrão – para blindar os alvos da Operação Lava Jato.

A última, e inacreditável, por ousada e pelo timing escolhido, é a indecorosa tentativa de promover uma anistia ampla e quase irrestrita para que nenhum candidato possa ser preso oito meses antes das eleições. Não é preciso chegar ao final do texto para saber quem a gambiarra da impunidade pode beneficiar.

Sim, esse mesmo que você pensou, o ex-presidente Lula, condenado há duas semanas pelo juiz Sérgio Moro a nove anos e seis meses de prisão, e que cuja decisão em segunda instância, capaz de levá-lo inapelavelmente para a cadeia, tende a sair exatamente no período estabelecido pela emenda casuística: oito meses antes das eleições. Não por acaso, a proposta nasceu apelidada de “emenda Lula”.

DE NOVO ELE Em 2009, Vicente Cândido articulou emenda do terceiro mandato de Lula (Crédito: Pedro Ladeira)

O cúmulo do oportunismo e da sem-vergonhice, travestido de projeto de iniciativa parlamentar, é da lavra do relator do projeto de reforma política na Câmara, Vicente Cândido (PT-SP), fiel escudeiro de Lula e a quem ele recorre toda vez em que está em apuros.

Ao que é prontamente atendido, sem sequer corar-lhe as bochechas. Como quando quis testar o meio político e a opinião pública, ainda em 2009, sobre a possibilidade de concorrer a um terceiro mandato consecutivo. Mais uma vez, lá estava a postos Vicente Cândido, candidamente, para propor mais uma iniciativa que se ajustava com perfeição aos desígnios de Lula. Não logrou êxito, como se sabe.

Claro que a “emenda Lula” se estenderia a outros parlamentares encrencados com a Justiça. Toda a classe política seria beneficiada. Mas não há sombras de dúvidas de que a proposta foi feita sob medida para atender as conveniências do ex-presidente petista.

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De acordo com um parlamentar próximo a Cândido, a ideia era matar dois coelhos numa tacada só: aprovada a emenda, seria disseminada a narrativa, segundo a qual, se o petista não pode ser preso, a candidatura também não poderia ser cassada com base na Lei da Ficha Limpa.

A ideia era disseminar a tese de que, se o petista não pode ser preso, a candidatura também não poderia ser cassada com base na Lei da Ficha Limpa

De acordo com o texto da proposta de Vicente Cândido, antes mesmo das convenções partidárias, os pré-candidatos ficariam imunes à prisão. Hoje, esse prazo é de apenas cinco dias antes da eleição. Para o analista político Antônio Augusto de Queiroz, o Toninho, diretor de Documentação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) trata-se de uma esquisitice, para dizer o mínimo. “A tal habilitação prévia e consequente imunidade à cadeia acontece antes da convenção partidária. É um negócio meio esquisito, né?”, avalia. “E se o partido não der legenda? Ele ficou blindado, não pode ser preso, e se ele não for candidato? Como é que fica?”

Para Toninho, é difícil que a medida seja aprovada pelo Congresso. “A medida já surgiu estigmatizada com esse selo de que veio para o Lula”, justifica. A lamentar também que todo esse episódio já concorre para atrapalhar a votação de medidas louváveis no âmbito de uma mais do que necessária reforma política. “Elencaria como importantes iniciativas no sentido de racionalizar o horário eleitoral, ampliar a fiscalização das campanhas, reduzir a desigualdade entre candidatos e a garantir a presença de candidatos ligados a minorias”, afirmou o diretor do Diap.

UM ACINTE Para juiz da Ficha Limpa, iniciativa é injustificável: “um cavalo de tróia”

ISTOÉ tentou contato com Vicente Cândido por dois dias, mas ele preferiu o refúgio do silêncio. Em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, porém, afirmou que o objetivo é o de “reagir” ao Judiciário, que tem feito inúmeras prisões de políticos, notadamente os sem foro privilegiado, como demonstram os três anos de Operação Lava Jato.

Ou seja, o PT, um partido recheados de fora de lei, já não esconde mais o desejo de confrontar a Justiça. “Tem muita exploração da política por parte de promotores, juízes, delegados, então é para evitar que, no ano que vem, em especial, haja exploração dessa natureza”, contou o deputado.

Ele reconhece que o tempo de oito meses seria muito extenso para um salvo conduto. “Mas nesse momento em que nós estamos vivendo, acho que é uma necessidade. Há uma vulnerabilidade da política, acho que falta ação da política, sobretudo no Legislativo que poderia ter um papel mais coordenador do equilíbrio”. E tome narrativa baseada em sofismas. O juiz Marlon Reis, criador da Ficha Limpa, foi preciso ao dizer que a medida é um “cavalo de Tróia”. “Ela vem com uma capa de algo que já estava sendo reivindicado pelo movimento contra a corrupção eleitoral, que é a antecipação da habilitação. Claro que da maneira como foi apresentada é extremamente negativa e injustificável”, afirmou. É o famoso lobo em pele de cordeiro. Nessa fábula, sabemos quem perde no final.

O salvo conduto para Lula

O deputado Vicente Cândido (PT-SP) apresentou emenda para impedir que candidato possa ser preso oito meses antes das eleições. Tudo para beneficiar Lula
• A emenda Lula prevê que um candidato a presidente, pré-habilitado em fevereiro, não possa ser preso oito meses antes das eleições
• Hoje, a lei eleitoral estabelece que os candidatos não podem ser presos quinze dias antes do pleito
• O petista Vicente Cândido objetiva, claramente, impedir que Lula tenha a prisão decretada pelo Tribunal Regional Federal, da 4ª Região, que deve referendar a condenação do ex-presidente a uma pena de 9 anos e 6 meses de cadeia
• Se Lula for condenado em segunda instância, ele deverá ser preso, conforme entendimento do STF. Nesse caso, não poderá disputar as eleições
• A mudança na lei para favorecer Lula tem que ser votada em agosto na comissão especial da reforma política e depois ir a plenário. Em seguida, tem que ser votada no Senado até setembro, para valer para as eleições do ano que vem


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