Legislar em causa própria integra a tradição patrimonialista do estamento político burocrático brasileiro – e dele faz parte o Congresso Nacional. Isso é péssimo para a Nação, e não vem sendo diferente agora quando deputados propõem alterações no projeto “10 medidas contra a corrupção”, elaborado pelo Ministério Público Federal e subscrito por aproximadamente dois milhões de cidadãos. Há, no entanto, uma diferença: a mudança em um dos pontos centrais do projeto, pleiteada pelos parlamentares, dessa vez atende à incolumidade do estado de direito, embora fique transparente que eles estejam pensando, sobretudo, em como salvaguardar as suas próprias peles. O item da proposta do MPF, em questão, é o que tenta dar respaldo legal à denominada “prova ilícita”, desde que colhida em “boa-fé”.

O estado de direito exige inequívoco respeito ao princípio do “devido processo legal”. Falando-se então em “boa-fé”, claro que não há no País um único cidadão que viva em boa-fé e não queira a punição de corruptos. Nessa direção as medidas propostas pelo MPF são bem-vindas. Não o são, porém, aquelas que ferem o estado de direito e, em decorrência, arranham garantias constitucionais. Prova lícita é prova lícita, prova ilícita é prova ilícita, não há condição híbrida. E, por definição e por sua própria segurança, guarda o “devido processo legal” o princípio do direito americano de “fruits of the poisonous tree” (um fruto envenenado estraga toda a árvore, assim como uma prova ilícita conspurca o processo).

Prova lícita é prova lícita, prova ilícita é
prova ilícita; não há condição híbrida

O que é prova ilícita colhida em “boa-fé” num País em que a interceptação telefônica tem de se dar legalmente pelo prazo máximo de trinta dias, mas que, não raras vezes, a vemos se estender por até um ano? O que é prova ilícita colhida em “boa-fé” se persiste a investigação policial com “flagrante provocado”? (Prefiro a expressão flagrante incitado). O que é prova ilícita colhida em “boa-fé” se persiste o “hábito” policial de vasculhar casas em bairros pobres sem o competente mandado de busca judicial? A iniciativa do MPF e o apoio dos dois milhões de brasileiros são dignos de elogios, mas é vital que o combate à corrupção se dê em inquestionáveis e estritos contornos legais — até porque, qualquer brecha jurídica, sempre beneficiará aqueles aos uais se pretende punir.


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias