Aos 86 anos, o jornalista americano Tom Wolfe não sai a campo para escrever reportagens como no seu auge nos anos 1960. Ele defendeu que lugar de repórter é na rua desde o início de uma carreira que o converteu no papa do New Journalism e do romance de costumes contemporâneo, como “A Fogueira das Vaidades” (1987). Eis a sua lição de jornalismo: não importa o meio ou gênero que o repórter use para se expressar, internet, livro ou periódico, ele precisa perguntar e desconfiar de tudo, com racionalidade e um ponto de vista crítico.

Armado dessas ferramentas e credenciais, Wolfe não precisou sair de casa para viajar no tempo e espaço atrás de uma questão que o obcecou nos últimos anos, a de como o ser humano se destacou dos outros animais. Foi pela seleção natural das espécies ou pela aquisição da linguagem?

Wolfe usou a internet para responder às perguntas e fazer a expedição pelos reinos rarefeitos das teorias biológicas e linguísticas produzidas nos últimos 150 anos. O resultado é o livro “O Reino da Fala”, publicado em 2016 e agora lançado pela editora Rocco no Brasil. É uma grande reportagem que vasculha a origem e a evolução da linguagem a partir das polêmicas travadas entre os cientistas na segunda metade do século 19. Tudo começa com a teoria evolucionista de Charles Darwin, passa pela gramática gerativa de Noam Chomsky e chega finalmente à língua primitiva dos índios piharã de Rondônia, pesquisada pelo linguista Daniel L. Everett.

LIVRO “O Reino da Fala” (2016) marca o retorno de Tom Wolfe à não-ficção, depois de romances de sucesso

Impostura

A disputa pela primazia da teoria total sobre a evolução da humanidade atravessou dois séculos, foi violenta, atingiu reputações, experimentou décadas de silêncio e, segundo constatou Wolfe, não chegou a conclusão alguma. Um grupo de linguistas liderado pelo pai de todos, Noam Chomsky, divulgou em 2014 um texto com a seguinte observação: “As perguntas mais fundamentais acerca das origens e da evolução da nossa capacidade linguística permanecem tão misteriosas quanto antes. Nos últimos anos houve uma explosão de pesquisas sobre este problema.” Wolfe desconfiou da declaração. “Muito estranho”, afirma. “Então tudo o que isso produziu foi um colossal desperdício de tempo e por parte de algumas das maiores mentes do universo acadêmico.”

Apesar das teses inconclusivas, mais perguntas provocaram cócegas no cérebro de Wolfe: afinal, foi a seleção natural das espécies ou a linguagem que fez o homem dominar a natureza? A linguagem é fruto do acaso ou um dom divino? É um órgão que produz gramática, como quer Chomsky, ou um objeto cultural, como pensa Everett?

Na falta de melhor guia, Wolfe assumiu a impostura diante dos acadêmicos e tratou de fornecer uma resposta a seu modo intrépído, caótico. Como convencidos adormecem convencidos, a revelação lhe ocorreu à noite “não como resultado de qualquer análise, mas como algo tão perfeitamente óbvio que eu mal conseguia acreditar que um sábio consagrado não houvesse notado aquilo antes”.

Wolfe notou que a distinção entre o homem e o animal está na fala. “A fala deu à besta humana muito mais que uma engenhosa ferramenta de comunicação”, escreve. “A fala foi uma verdadeira arma nuclear. A fala foi o primeiro artefato, a primeira ocasião em que uma criatura, o homem, pegou elementos da natureza (neste caso, sons), transformando-os em algo inteiramente novo e feito pelo homem… cadeias de sons que formavam códigos, códigos esses denominados palavras. Mas a fala não é apenas um artefato, é o artefato primordial. Sem a fala, a besta humana não conseguiria ter criado quaisquer outros artefatos, nem o porrete mais grosseiro, nem a enxada mais simples, nem a roda, nem o foguete.” Nem a pintura, nem a dança, nem a música — e, pode-se acrescentar, muito menos o texto abusado de um velho repórter.

Biólogos versus Linguistas
De Darwin a Everett, foram 150 anos da guerra de ideias sobre se a linguagem tem origem animal ou é um dom inato da espécie humana