Na casa de Zenaide de Jesus, 57 anos, no Morro do Piolho, zona sul de São Paulo, as fotos que mostravam Ítalo Ferreira de Jesus Siqueira sorrindo no alto da estante foram guardadas. As roupas, rasgadas, e a mochila, doada. Apagar as lembranças do garoto foi a forma menos dolorosa que a avó e os primos encontraram para deixar para trás um crime, segundo eles, já esquecido por todos. A poucos quilômetros dali, a carteira que Júlio, amigo de Ítalo que assistiu a seu assassinato, ocupava na escola está vazia. Hoje, o adolescente de 12 anos abandonou os estudos e é visto perambulando pelo bairro. “A sensação que temos é que ele morreu junto com Ítalo”, diz Luciene Cavalcante da Silva, diretora da Escola Municipal de Ensino Fundamental O’Higgins, em Santo Amaro. No dia 2 de junho do ano passado, após furtarem um carro no bairro do Morumbi, os garotos foram perseguidos e alvejados pela polícia. A notícia da execução de Ítalo, aos 10 anos, ecoou rapidamente na comunidade em que vivia. A prima do menino, Sabrina Bianca de Jesus Siqueira, de 20 anos, conta que a avó Zenaide passava mal ao ver o noticiário. “Só transmitiam o caso dele e, quando desligávamos a televisão em casa, os vizinhos estavam assistindo”, diz. Hoje, porém, o silêncio e a resignação reinam nas duas famílias. E muitas perguntas ainda permanecem sem respostas. Por isso, em março, o Ministério Público reabriu o caso e encontrou 23 contradições na apuração dos fatos.

A prima Sabrina Bianca de Jesus, 20 anos, que ajudou a cuidar do garoto desde os seis meses de idade
DOR A prima Sabrina Bianca de Jesus, 20 anos, que ajudou a cuidar do garoto desde os seis meses de idade (Crédito:Andre Lessa/ISTOE)

O órgão questiona por que a ocorrência foi apresentada ao Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) somente após cinco horas e 23 minutos da execução. Os policiais Otávio de Marqui e Israel Renan Ribeiro da Silva terão de responder por que a arma foi retirada do local, preservado por outros policiais e viaturas. “Não pode haver interferência na cena do crime”, diz Fernando Bolque, promotor de Justiça. Outra contradição também foi flagrada no primeiro depoimento dos policiais, que disseram terem sido recebidos a tiros quando se aproximaram do veículo. O laudo do Instituto de Criminalística, porém, concluiu que houve apenas um disparo de fora para dentro do veículo e que não havia vestígios de chumbo no interior do carro. Além disso, não existiam resíduos de chumbo na luva utilizada pelo garoto – na versão dos policiais a substância havia sido encontrada nas mãos de Ítalo. Os PMs deverão responder, ainda, por que Julio foi retirado do local do crime e levado para casa por eles. “Ele deveria ter sido encaminhado à delegacia de polícia e então o Conselho Tutelar providenciaria a entrega da criança à família ou aos responsáveis”, diz Bolque. “Não é comum a ocorrência de tantas contradições como vimos nesse caso.”

“Os policiais têm que ser presos. Eles estão fora da rua, mas estão trabalhando. Saem do serviço e vão para a casa. Para essas pessoas, o Ítalo foi só mais um” Sabrina Bianca de Jesus, prima de Ítalo

Contradições

Enquanto os policiais não respondem ao Ministério Público todas as incongruências, as famílias convivem com a dor e o abandono. “Vi nos jornais que o inquérito foi reaberto, mas ninguém veio atrás de nós”, afirma Sabrina. Sobrou a resignação para os parentes que enfrentam todo o tipo de dificuldade financeira e hoje engrossam as estatísticas de crianças e jovens baleados pela polícia. Usuária de drogas, Cíntia Ferreira Francelino, 30 anos, a mãe de Ítalo, costumava sair de casa sem hora para voltar. “Em um desses dias, quando ele tinha seis meses, ouvimos um choro em um barraco. Encontramos o bebê cheio de marcas de queimadura de cigarro”, diz a prima. Desde então, Zenaide passou a cuidar do garoto, que dava bastante trabalho. Hiperativo, mesmo quando ainda cursava a escola ele tinha a necessidade de fazer outras atividades. Dedicada, a avó conseguiu incluí-lo em uma ONG na qual ele passava a manhã antes de ir para a aula, à tarde. “Ítalo chegava em casa à noite, exausto, e só pensava em dormir”, afirma Sabrina. O comportamento do menino mudou quando Cíntia, que até então estava presa, foi solta. “Ela nos convenceu a deixar que o levasse ao Mc Donald’s, mas não devolveu o menino. Ele voltou meses depois, com a cabeça virada.” Segundo a prima, que também cuidava da criança, Cíntia o levava para acompanhá-la em pequenos furtos. Para a família, a morte do menino sob tais circunstâncias foi um choque. “A gente não aceita o jeito que ele morreu. Se fosse por doença, por atropelamento, mas foi com um tiro no olho”, diz Sabrina. À dor da mãe de Ítalo se somou o sofrimento pelo preconceito. Ex-presidiária, Cíntia foi vítima do julgamento até dos financiadores da ONG que a assistia. “Nos chocou a fragilidade emocional dela. Estava assustada, não confiava em ninguém”, afirma Welinton Pereira, da ONG Visão Mundial. Em novembro do ano passado, Cíntia foi presa novamente por roubo, mas já está em liberdade.

Trajetórias

Ítalo tinha por hábito pedir dinheiro nas proximidades do Aeroporto de Congonhas, também na Zona Sul da capital paulista. Em uma dessas ocasiões, conheceu Júlio Evandro Silva Alves e se tornaram amigos. A diretora da escola em que estudava, em Santo Amaro, lembra que o garoto andava muito pelos arredores do colégio e, em função desse comportamento agitado, precisava de um atendimento individual. “Sempre foi um garoto meigo, nunca falou palavrão, mas tinha dificuldade em se concentrar”, diz Luciene. Antes de chegar ao Morro do Piolho, a família de Júlio foi vítima de incêndios em outras comunidades e perdeu tudo, inclusive os documentos. As mudanças interrompiam frequentemente o tratamento neurológico que o garoto fazia. Inquieto, ele engraxava sapatos para juntar dinheiro e depois comprar brinqueado. “Júlio era muito curioso”, diz a diretora. Depois de ter assistido à execução do amigo, ficou transtornado, amedrontado. Evitava conversar e abandonou a escola. Após a morte de Ítalo, a família permaneceu por 20 dias no Programa de Proteção a Vítima e à Testemunha por medo de sofrer represálias. “Eles mudaram de estado, mas a mãe de Júlio começou a se sentir muito presa e preferiu voltar à vida que tinha antes”, diz Ariel de Castro Alves, advogado e coordenador da Comissão da Criança e do Adolescente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe). “À época, o padrasto de Júlio foi preso e a Elaine queria retornar para São Paulo para visitá-lo.”

O caso ítalo

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Divulgação

No dia 2 de junho de 2016, Ítalo, de 10 anos, e Julio, de 11, foram alvejados por policiais militares depois de roubarem um carro no Morumbi, zona sul de São PauloÍtalo, que recebeu um tiro na cabeça, morreu. Júlio, que testemunhou o crime, chegou a dar três versões diferentes aos investigadores.Os policiais afirmam que agiram em legítima defesa, mas o Ministério Público garante que há contradições entre a versão da polícia e laudos criminais

A família de Ítalo não recebeu nenhum tipo de indenização do Estado e a de Júlio enfrenta problemas financeiros ainda mais sérios, já que o marido de Elaine, que fazia trabalhos informais para sustentar a casa, está preso. Hoje, ela, que também não tem renda fixa, tenta resguardar o filho do trauma que viveu. No dia do crime, Ítalo pediu à prima um prato de comida e dinheiro para jogar fliperama. Antes de servi-lo, porém, percebeu que o garoto já havia desaparecido. No dia do enterro, a família entrou em contato com o pai de Ítalo, que estava preso. Ele, que tinha visto o caso pela televisão, perguntou quem era o garoto que morreu na avenida Espraiada, na zona sul da cidade. Do outro lado da linha, o silêncio. “Na hora ele ficou muito nervoso, quebrou tudo e teve de ser acalmado. Hoje, ele aceita que o filho se foi”, diz a prima, que de tempos em tempos vai ao Cemitério do São Luiz para limpar o túmulo do garoto. Júlio, por sua vez, foi visto vagando pelo Morro do Piolho. “Ele estava quieto e com fome”, diz Luciene. Enquanto isso, os policiais investigados continuam trabalhando em setores administrativos até o fim do processo. Para a família de Ítalo, não é o suficiente. “Eles têm que ser presos. Estão fora da rua, mas estão trabalhando. Saem do trabalho e vão para a casa. Para essas pessoas, o Ítalo foi só mais um”, diz Sabrina. Segundo Ariel de Castro Alves, as investigações devem ser feitas por outras equipes, já que as anteriores afirmam com convicção que os policiais teriam atuado em legítima defesa. Caso contrário, as famílias, devastadas pela dor, serão eternas vítimas da injustiça.

SILÊNCIO Sem indenização, familiares de Ítalo fazem a manutenção do túmulo do menino no cemitério São Luiz, na zona sul de São Paulo
SILÊNCIO Sem indenização, familiares de Ítalo fazem a manutenção do túmulo do menino no cemitério São Luiz, na zona sul de São Paulo (Crédito:Zanone Fraissat/Folhapress)

O QUE A POLÍCIA NÃO EXPLICOU
O Ministério Público do Estado de São Paulo encontrou 23 contradições no inquérito apresentado pelo DHPP sobre a morte de Ítalo. As principais falhas:

• Policiais afirmaram, em depoimento, que foram recebidos a tiros por Ítalo. A investigação provou que não havia resíduos de chumbo no interior do veículo

• Laudos do Instituto de Criminalística demonstram que o disparo ocorreu de fora para dentro do veículo e não de dentro para fora

• Mesmo com o local isolado por policiais militares e viaturas, a arma foi retirada da cena

• Júlio, amigo de Ítalo, foi conduzido por policiais militares e passou por diversos locais antes de ser levado para a sua casa – o que deveria ter sido feito pelo Conselho Tutelar

• Conforme apontam fotos e depoimentos, Ítalo usava luvas e não havia resíduos de chumbo nelas. Como é possível que houvesse resíduos de chumbo em suas duas mãos?

• Considerando a altura de Ítalo e o fato de que o vidro do veículo estava semi-aberto, como ele teria conseguido dirigir e atirar ao mesmo tempo?


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