Don DeLillo se tornou referência para o escritores americanos da nova geração. Ele é amigo de Jonathan Franzen e trocou uma farta correspondência com David Foster Wallace. Em relação à geração mais recente, ele se diz otimista e incentivado a escrever. “Não vou citar nomes, mas posso dizer que a ficção americana vi muito bem. Hoje vivemos nos Estados Unidos uma onda de ficção, em especial contos, inspirados pelos recentes confrontos políticos entre a geração jovem e o governo”, diz De1Lillo em entrevista concedida à ISTOÉ, por telefone, de Nova York. Certamente as novas gerações de autores se inspiraram no estilo ferino e crítico que DeLillo começou a mostrar desde sua estreia literária, em 1971, com o romance “Americana”, uma alegoria da mídia predadora em busca de imagens sensacionais. Ao longo dos anos, ele explorou os temas da América disfuncional que atinge a vida tanto dos americanos anônimos como a das celebridades. É o caso do grande romance “Libra” (1988), em que traça o retrato de Lee Harvey Oswald, assassino de John Fitzgerald Kennedy, como um homem obcecado em se tornar famoso a qualquer preço. [posts-relacionados]

Se DeLillo não quer se reconhecer influente, ao menos já se declarou que uma das maiores influências sobre seu estilo é a obra do escritor irlandês James Joyce (1882-1941), especialmente os romances “Ulysses” (1922) e “Finnegans Wake” (1939). Isso porque DeLillo se agregou à linhagem dos narradores experimentalistas, para os quais a literatura tem vida e valor próprios e não serve apenas para imitar a realidade. No recente romance “Zero K” (Companhia das Letras, 272 páginas, R$ 49,90, tradução de Paulo Henriques Brito), de 2016, ele explora um dos temas caros à ficção científica, o da imortalidade, mas o faz de maneira intrigante e densa, sem concessões aos aspectos escabrosos da ficção científica. Há até mesmo miasmas do estilo do escritor austríaco Franz Kafka (1883-1924) no romance.

“Não quis praticar o gênero ficção científica, mas de usar um tema da inquietação provocada pela ciência atual, o da possibilidade concreta de obter imortalidade do corpo, para refletir sobre se perpetuar o corpo tem uma relação direta com a manutenção da identidade do indivíduo “, afirma DeLillo. “E se a preservação de uma cabeça congelada conservar a identidade do sujeito? Bom isso vai além da minha compreensão técnica, mas a premissa me permite criar uma história.”

Ora, isso não quer dizer que essa história não seja ela própria especialmente escabrosa, e contada como uma alegoria dos tempos de agora. A aventura do jovem Jeff Lockhart, seu pai Ross e a madrasta Artis dentro do complexo criogênico da seita científica Convergence é narrada em primeira pessoa. Jeff é transportado para o local, localizado nos confins do Uzbequistão. Sua madrasta sofre de uma doença terminal e está pronta para ser congelada, na esperança de um dia descongelar e voltar a viver, curada pela ciência do futuro distante. Ross, bilionário, investe e ingressa na Convergence como um defensor da fé na ciência da eternidade. “Pode parecer uma fantasia científica, mas hoje já existem pessoas interessadas em vencer a morte por meios científicos – e o mais interessante é que isso é possível”, diz DeLillo. “Existe um complexo de criogenagem bastante ativo no estado de Nevada. E há o caso real do jogador de beisebol Ted Williams (1918-2002), cujo corpo está congelado em suspensão criogênica à espera da ressurreição, a seu pedido. São casos reais que podem assombrar o senso comum, mas já fazem parte do cotidiano. Foi esse tema que explorei no livro.”

Aqui surge um tema kafkiano em “Zero K”: o indivíduo enredado por uma organização é determinante para o seu destino pessoal, mas cujo funcionamento lhe escapa à compreensão. Assim, à medida que Jeff se embrenha no complexo hospitalar-religioso uzbeque, também se deixa fascinar pela ideia de se tornar imortal. Uma cena é especialmente kafkiana: Jeff percorre os corredores cheio de portas fechadas do hospital-hospício-catedral-laboratório Convergence. Ele quer descobrir o que está por trás das portas. “Resolvi ignorar as possíveis consequências”, conta. “Segui em frente pelo corredor, escolhi uma porta e bati. Esperei, andei até a porta seguinte e bati. Fiz isso seis vezes e disse a mim mesmo: mais uma porta, e dessa vez a porta se abriu, e lá estava um homem de terno, gravata e turbante. Olhei para ele, pensando no que dizer. ‘Acho que bati na porta errada’, disse. Ele me dirigiu um olhar duro. ‘Todas as portas são erradas’, disse ele. Levei algum tempo para encontrar o escritório do meu pai.”

A passagem acima remete à fábula ‘Diante da lei’, inserida no romance “O Processo”, de Franz Kafka, escrito entre 1914 e 1915 e publicado postumamente, em 1925. A parábola reflete a imagem em abismo do próprio romance.  O que é que você ainda quer saber? pergunta o porteiro. Você é insaciável. Nela, um homem se posta diante da porta da lei, vigida por um porteiro, à espera de ser chamado. Ninguém aparece por lá e se passam anos e anos. Quando está próximo da morte, ele pergunta: “Todos aspiram à lei. Como se explica que em tantos anos ninguém além de mim pediu para entrar?” O porteiro berra o ouvido do moribundo: “Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a.” O episódio de DeLillo espelha a fábula de Kafka, introduzindo uma ironia: o homem agora não se acovarda e, diferente do personagem de “Diante da lei”, abre todas as portas, mas nenhuma delas está correta. “Fico feliz que você tenha entendido essa passagem”, afirma DeLillo. “Eu dialoguei quase sem querer com Kafka, um autor que li diversas vezes. É um momento surreal que dá o tom da história. Há elementos nela que escapam a explicações, como nesse momento do corredor, como as histórias de Kafka”.

As ideias lhe vêm à mente sem planejamento ou um projeto racional, explica. ‘As ideias vêm do nada, durante o processo de escrita”, afirma DeLillo. “Começo a escrever uma história e não sei onde ela vai dar, mas ela acaba ganhando forma, sentido e estrutura tão logo termino de escrever. É um estranho processo de unidade. Eu não sou sistemático, não me proponho a escrever como uma rotina. A rotina acabaria com minha obra – ou melhor, com rotina ela nunca teria existido.”

Ele afirma que está concluindo um novo romance, mas não revela detalhes. “Quando acabar, convido você para tomarmos um café e conversarmos”, diz. “Mas agora estou com sono, minha voz está falhando e preciso desligar.” Às vezes, a gente se esquece que esse mito literário contemporâneo já tem 80 anos.