Em uma das quadras da Fundação Getúlio Vargas (FGV), uma aluna bolsista de 17 anos do curso de administração ouviu, na sexta-feira 3, gritos de ofensa contra ela de uma pessoa ainda não identificada. “Negrinha, aqui, não”, dispararam durante um campeonato da instituição. Estudante de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Lucas Clementino, de 19 anos, escutou de um professor em sala de aula: “Alunos que não têm dinheiro deveriam abandonar o curso.” Outra jovem, de 24 anos, que prefere não se identificar, do curso de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie, foi alvo de comentários racistas por parte de um professor. “Pedi para ele me incluir em um grupo de trabalho e ele disparou ‘poderia ter te colocado em frente à sala e te vendido, como faziam com os escravos’”, lembra. “Ninguém deu risada, ficou um clima de constrangimento e eu senti medo de dizer qualquer coisa.” Amanda Domingues, de 19 anos, cursa cinema na PUC e, para chegar à faculdade precisa pegar trem, dois ônibus e metrô. “Disseram que eu seria excluída da turma por morar muito longe.” João Victor dos Santos, de 22 anos, estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo assistiu a um professor defender na sala de aula que alunos negros e pobres rebaixavam a qualidade de suas aulas. Jovens como esses, bolsistas de instituições de ensino superior, têm sido alvo constante de discriminação, não apenas de colegas, mas de professores, em um ambiente que, em tese, deveria primar pela diversidade. “São casos ainda mais graves porque atingem uma esfera de hierarquia em que o aluno se sente coagido a manter o silencio”, diz Clementino.

As manifestações de preconceito ocorrem na sala de aula. Um professor da Universidade Federal do Espírito Santo chegou a ser afastado por ser muito agressivo com os cotistas

Os relatos vieram à tona inicialmente pela página do Facebook “Bastardos da PUC”, em referência à expressão “Filhos da PUC”. “Tudo começou com um grupo no whatsapp para fazer desabafos e falar sobre dificuldades”, diz Gabriel da Costa Gomes, 22 anos, estudante de publicidade da PUC-RJ e bolsista do ProUni. O espaço, que começou com menos de mil seguidores em setembro atingiu em março 13.954 membros e reúne depoimentos de bolsistas vítimas de preconceito de professores. O objetivo é oferecer uma plataforma anônima para as denúncias e levar à reitoria casos de discriminação. No ano passado, por meio de uma determinação extrajudicial, a universidade tentou retirar a página do ar sob a alegação de que ela continha comentários depreciativos e mentirosos. Hoje, os organizadores estabeleceram um canal de diálogo com a reitoria para melhorar a eficiência da ouvidoria e estudam meios para investigar e punir professores denunciados.

Ataque O estudante de engenharia da computação A.F.G.D. foi alvo de comentários preconceituosos por parte de colegas na PUC-MG
ATAQUE O estudante de engenharia da computação A.F.G.D. foi alvo de comentários preconceituosos por parte de colegas na PUC-MG

A.F.D, de 23 anos, também bolsista, saiu do interior de Minas Gerais para estudar engenharia de computação na PUC-MG e conviveu com a hostilidade dos centros acadêmicos elitistas. “As pessoas falavam que apesar de ter vindo de uma cidade pequena, eu me vestia bem”, diz. “Outro dia, disseram que eu não saberia usar o cartão de crédito por ter vindo da roça.” Relatos como esses revelam que, mesmo após cinco anos de a Lei de Cotas ter sido sancionada e amplamente utilizada nas universidades, ainda há margem para preconceito. “Existe uma raiva incutida nessas atitudes. Os alunos que não aceitam os cotistas são de escola particular e classe social mais alta”, afirma a Maria Cristina Figueiredo Guasti, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), que estudou a relação entre cotistas e não cotistas. Para ela, ainda persiste no imaginário do estudante a idéia de que o bolsista ocupa um espaço que não merece. Gabriel, da PUC, diz que a discriminação é reforçada, muitas vezes, de forma sutil em pequenas conversas em sala de aula. Segundo ele, em uma turma do curso de Design, a professora teria comentado, após dar uma nota baixa em uma prova: “tinha que ser bolsista mesmo.”

OUVIDORIAS
Nas aulas de Ciências Sociais, João Victor passou horas ouvindo argumentos contrários à política de cotas. Afastado pela universidade em 2015, o professor do departamento de economia, Manoel Luiz Malaguti, declarou que “o nível da educação está tão baixo que o professor não precisa se qualificar mais para dar aula, já que a maioria dos cotistas é negro, pobre, sem leitura e analfabeto funcional.” João Victor afirma que ele se referia ao grupo como membros de uma cultura inferior e diz que algumas listas de presença da universidade eram separadas entre cotistas e não cotistas. “A maior discriminação que já sofri foi na universidade”, diz. Agora, com a ajuda de páginas e grupos em redes sociais, o número de denúncias cresce rapidamente, segundo os organizadores dos coletivos. Na UFES, por exemplo, a média é de duas por semana. “Queremos criar uma cultura de denúncia dentro no ambiente universitário e precisamos do serviço das ouvidorias para isso”, afirma Gabriel. No caso recente da FGV, o diretor da escola de economia, Yoshiaki Nakano, publicou uma nota de repúdio, afirmando que são inaceitáveis quaisquer ações preconceituosas. Caso contrário, o espaço de educação e aprendizado continuará hostil e discriminatório para muitos jovens.

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• Realizar campanhas de conscientização nas redes sociais, com o suporte de alunos e professores chefes de departamento

• Adotar medidas firmes de punição contra professores comprovadamente envolvidos em casos de discriminação

• Construir uma ouvidoria independente da instituição vinculada aos centros acadêmicos e coletivos


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