Na última semana, a presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, surpreendeu togados de todo o País. Ela decidiu cumprir o que determina a lei e tornou público todos os salários de ministros e assessores do STF. Medida que, segundo o artigo 37 da Constituição, deveria ser seguida pelos demais tribunais superiores do País, pelos Tribunais de Justiça dos Estados e pela administração direta do Executivo e do Legislativo, mas que na maioria dos casos é simplesmente ignorada. A divulgação desses salários foi posta em lei como forma de garantir que o teto salarial de R$ 33,7 mil não seja extrapolado. O problema é que magistrados em geral não costumam seguir essa regra. Portanto, ao divulgar a folha salarial do STF, Cármen Lúcia não apenas atendeu a legislação, como enviou um duro recado. Foi o mais forte, mas não o primeiro.

O Superior Tribunal de Justiça passou a divulgar a remuneração dos seus ministros e servidores em junho, mas os ganhos dos meses e anos anteriores permanecem clandestinos. Já nos tribunais de Justiça federais e estaduais, seus juízes e desembargadores, em vez de seguirem a lei, se mostram adeptos ao ditado popular que diz “para os amigos tudo, para os inimigos o rigor da lei”. Não ignoram apenas a Constituição, mas também a Lei de Acesso à Informação (LAI 12.527), que criou mecanismos para que qualquer pessoa receba esclarecimentos dos órgãos públicos, inclusive sobre as remunerações, que, em alguns casos, atingem valores estratosféricos, superiores a R$ 500 mil num único mês.

Agora, parece que a presidente do STF quer colocar um fim nessa bandalheira. Além da divulgação feita na semana passada, ela baixou uma portaria exigindo que os salários de magistrados e servidores da Justiça sejam enviados até a segunda-feira 4 ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), também presidido por ela. A ministra aguarda 96 respostas aos pedidos de informações que fez. Até a quinta-feira 31, haviam chegado apenas 41. Somente depois de estar em posse destes dados, é que o CNJ iniciará o espinhoso trabalho de verificar se os números recebidos são a expressão da verdade ou não e se são completos ou parciais. Feita esta análise, Cármen Lúcia saberá se o Judiciário segue a regra obrigatória para qualquer cidadão, de jurar dizer a verdade, nada mais do que a verdade.

Integrantes da equipe de Cármen Lúcia garantem que ela está determinada a por um fim no desrespeito à Constituição pelos magistrados, pois está convencida que “não podem existir duas leis no País”, que “o teto salarial deve ser cumprido” e que “é preciso colocar ordem no Judiciário”. Porque, afinal, um País não pode ter 13 milhões de desempregados e “um sujeito ganhando R$ 500 mil por mês”, como diz um de seus assessores. Quando anunciou a portaria, Cármen avisou que, após a análise dos dados compilados, “a presidência do CNJ providenciará a adoção de medidas específicas pela Corregedoria Nacional de Justiça para adotar providências quanto ao descumprimento das normas constitucionais e legais sobre pagamentos realizados sem o fundamento jurídico devido”, como diz a ministra ao explicar sua portaria. Os tribunais que não respeitarem a norma serão alvo de correição do CNJ e punições acontecerão.

Contra o corporativismo

A presidente do STF ainda não oficializou o que fará contra os infratores da Legislação. Seus assessores dizem que ela está disposta a fazer de tudo para enfrentar “uma corporação fortíssima, representada por uma comunidade de juízes”. Contam que, como no passado, já existem até ameaças de greves.

Apesar da determinação demonstrada até aqui, há muito ceticismo sobre o cumprimento da decisão do CNJ e a disposição de sua presidente é de “mergulhar de cabeça” nessa batalha. Não é a primeira vez que tal decisão é tomada. A primeira foi em julho de 2012, quando o Conselho era presidido pelo ex-ministro do STF Ayres Brito. Ele falou grosso, passaram-se cinco anos e tudo continuou como antes. Naquela época, Ayres Brito acatou mandado de segurança do então prefeito paulistano, Gilberto Kassab, contra decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, proibindo a prefeitura de publicar nomes e salários de servidores de uma empresa municipal. A corregedoria do Conselho fez uma devassa no Tribunal paulista para investigar pagamentos indevidos de salários e examinar a evolução patrimonial. “Aproveitei mandado de segurança contra o prefeito Kassab para decidir que todos os poderes teriam o dever de publicar suas folhas de pagamento”, disse Ayres Brito à ISTOÉ. “No CNJ, aprovei resolução mandando publicar (os salários). A ministra Cármen Lúcia reafirma agora o que já existia. Há uma resistência, um corporativismo, um espírito de corpo. O Brasil é um País muito viciado O corporativismo é um dos três pilares do patrimonialismo, ao lado da corrupção e do desperdício. Na democracia tudo vem à luz, não tem como esconder. A democracia não vence por nocaute, ela vence por pontos. Enfrentamos um renitente e insidioso corporativismo. O apego à velha ordem e às suas velhas práticas é muito forte. Mas vai ser vencida”, completou Ayres Brito.

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Neste momento, a ação de Cármen Lúcia foi uma reação ao escandaloso caso do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, que autorizou pagamentos de valores vultosos para 84 magistrados. Um deles, o juiz Mirko Vincenzo Giannotte, titular da 6ª Vara de Sinop, registrou no seu contra-cheque de julho deste ano, um ganho de R$ 503.928,79. Um escárnio. Esta guerra contra os abusos no Poder Judiciário não é nova. O Tribunal de Minas Gerais, por exemplo, é reincidente. Quando presidia o CNJ, em 2006, o ex-ministro do STF Nelson Jobim determinou a redução dos salários dos desembargadores. Os servidores do TJ mineiro fizeram uma greve contra o teto salarial. O ministro Jobim foi declarado persona non grata, mas não se intimidou. Agora, ele pede que Cármen Lúcia não se limite a fixar a portaria. “Se ficar só na figuração não acontece nada. A autonomia financeira, aprovada na Constituinte de 1988, levou a isso. Antes, a folha de pagamento era impressa nas Secretarias da Fazenda dos estados. Havia um certo controle. Depois, cada Tribunal passou a imprimir suas folhas, sem nenhum controle, Espero que a ministra Cármen leve adiante. Precisa colocar a boca no trombone. Criar um ambiente. Os presidentes de Tribunais precisam ser convencidos de que cometem um crime de desobediência”, disse Jobim à ISTOÉ.

Juristas esperam rigor

A grande interrogação é saber se a deliberação do CNJ será novamente ignorada ou será cumprida. Todos querem saber se a decisão de Cármen Lúcia, a exemplo da adotada por Ayres Brito, ficará na história como uma reação com o objetivo de criar uma cortina de fumaça para que tudo continue como dantes no quartel de Abrantes do Poder Judiciário. Juristas acreditam que a presidente do STF só fará cumprir sua portaria se for rigorosa com os presidentes dos Tribunais de Justiça nos Estados, os principais sabotadores da transparência que o STF deseja impor. Nesse caso, esses tribunais teriam que abrir suas contas e submetê-las à opinião pública. “Estou aplaudindo de pé, mas acho difícil que seja realizado”, diz Eliana Calmon, ex-ministra do STJ. “Quando foi aprovada a Lei da Transparência, em 2012, o ministro Ayres Brito determinou que essa obrigação fosse cumprida. Mas não foi e ficou por isso mesmo. A iniciativa de Cármen Lúcia é boa, mas sou descrente. Precisa de firmeza dos ministros do STF e dos conselheiros da CNJ”, lembrou Eiliana Calmon.

O fim da caixa-preta na Justiça

> O Brasil tem 17.541 juízes, que não podem ganhar mais do que R$ 33,7 mil, que é o teto constitucional

> Por determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), presidido pela ministra Cármen Lúcia, todos os 90 tribunais do País tinham até segunda-feira 4 para enviar à entidade os dados sobre os pagamentos feitos aos magistrados de janeiro
a agosto de 2017

> Os tribunais terão de enviar, a partir de setembro, as folhas de salários até cinco dias após os depósitos para os juízes

> A Corregedoria Nacional de Justiça terá que tomar providências em caso de descumprimento do teto constitucional

> O descumprimento dos prazos resultará na abertura de correição especial no tribunal

> A presidente do CNJ, Cármen Lúcia, determinou a divulgação dos rendimentos de todos os ministros e servidores do STF

> Esta não é a primeira vez que o CNJ tenta enquadrar o Poder Judiciário a cumprir o teto constitucional. Em 2012, uma resolução similar foi publicada pelo CNJ mas diversos tribunais não enviaram as informações pedidas

 


Juiz assassino ganha R$ 27,5 mil por mês

 

Em agosto de 1997, o juiz Marco Antonio Tavares, de São Paulo, assassinou a mulher Marlene Aparecida Tavares. Em 2002, o magistrado foi condenado a 13 anos e seis meses de prisão e à perda do cargo. Apesar de ter sido afastado do trabalho, ele continua recebendo o salário integral de R$ 27.500, segundo consta na folha de pagamento do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), divulgada no site da entidade. Ganha sem trabalhar.

Ele e outros 11 magistrados, que também ganham sem trabalhar, estão na folha de pagamento do TJ-SP. Esses 12 juízes foram penalizados ou condenados nos últimos 25 anos e por isso foram afastados do trabalho regular, mas nem por isso deixaram de receber os nababescos salários. Na folha de pagamento, de julho último, eles receberam um total de R$ 307.497,78 (uma média de R$ 25,6 mil para cada um).

 

 


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