Mais concorrido professor de Harvard, filósofo defende que o Brasil concentre mais esforços na educação básica que na universidade

O filósofo político Michael J. Sandel é conhecido em muitas partes do mundo como o “pop star de Harvard”. Professor da universidade mais antiga e mais famosa dos Estados Unidos desde 1980, formou em seu curso “Justice” nada menos de 15 mil alunos presencias, além dos incontáveis seguidores das aulas abertas que mantém na internet. Com dois livros publicados em português, “Justiça”, um desenvolvimento de seu curso mais concorrido, e “O Que o Dinheiro Não Compra”, ambos pela editora Civilização Brasileira, o autor veio ao Brasil a convite do apresentador Luciano Huck para discutir a relação entre o jeitinho brasileiro e a corrupção endêmica no País sob a luz da ética. Em entrevista à ISTOÉ, Sandel disse que a corrupção cresce e a democracia sofre na medida em que as desigualdades aumentam em uma sociedade. Para o palestrante, apesar de o Brasil ser um País onde as diferenças de oportunidades são grandes, a apropriação e o uso da internet pela juventude pode ser um caminho para amenizar o abismo social que, segundo ele, é a grande fonte da corrupção.

ISTOÉ – O sr. disse que ficou impressionado e demorou um pouco para entender o “jeitinho brasileiro”. O sr acredita que ele é parte da corrupção endêmica que toma conta do Brasil?

Michael J.Sandel – Ao se admitir desvios de conduta para obter vantagens e ganhos abre-se o caminho da corrupção. Comprar DVDs piratas e subornar um policial para não ser multado são delitos relativamente pequenos que não afetam diretamente um sociedade, mas, em conjunto, criam um ambiente onde cumprimento dos acordos legais (que, na democracia, são acordos respaldados pela sociedade) se tornam frágeis e contornáveis. Esse é um ambiente em que a corrupção é estimulada.

ISTOÉ – Então, de fato, o “jeitinho brasileiro” é algo condenável.

Sandel – Não, não se trata de algo absolutamente condenável e nem sempre é imoral. Pude entender isso depois de alguns dias no Brasil. De um lado, o “jeitinho” pode, como já disse, alimentar um ambiente onde regras e, o que é mais grave, princípios fundamentais acabam ignorados ou atropelados. Mas existe também algo de criativo em determinadas situações que não faz dessa prática que os brasileiros admitem abertamente ter algo de natureza unicamente corrupta.

ISTOÉ – Por exemplo?

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Sandel – Quando se usa a esperteza para driblar algo que seja meramente burocrático, sem que se prejudique outros, sem que se coloque em xeque a liberdade ou ultrapasse os limites éticos. Esses limites, é importante dizer, não costumam estar escritos em um livro. Os contornos éticos tem de ser traçados pelo debate constante com participação da sociedade. Comprar uma camisa do Flamengo não oficial, ou um filme pirata, é contra a lei no Brasil, mas muitos pais brasileiros só conseguem dar esses presentes para os filhos dessa maneira, pois é o que seu dinheiro permite. Por outro lado, avisar um amigo pelas redes sobre um caminho que evite uma blitz da Lei Seca pode ainda não ser uma contravenção, mas cria a possibilidade de colocar vidas em risco. É preciso sempre observar que o certo a fazer pode variar entre sociedades e também entre situações.

ISTOÉ – O sr. defende em seu livro mais conhecido, “Justiça”, que devemos nos apoiar em princícpios filosóficos para que as leis protejam de fato os contornos éticos.

Sandel – Sim, Aristóteles, por exemplo, defende que uma constituição justa deve levar em conta como se viver melhor e para isso a sociedade deve promover a virtude de seus cidadãos e desencorajar os vícios. Parece simples e lógico, não é? Mas a filosofia moderna, a partir de Kant, discorda do uso de concepções particulares de vício e virtude e coloca em primeiro lugar a defesa da liberdade do indivíduo. O que eu penso a partir desse contraditório é que quanto mais desigual em oportunidades uma sociedade for, mas difícil conjugar essas duas premissas de Justiça.

ISTOÉ – o sr. vê, então, a desigualdade como principal causa da corrupção.

Sandel – Sem dúvida, uma sociedade em que as pessoas de diferentes origens e modos de vida não possam compartilhar as mesmas experiências – as mesmas escolas, opções de moradia, de lazer e outras – tem sua democracia enfraquecida de muitas formas. Suas leis, por exemplo, podem se tornar distantes da realidade vivida pelas comunidades marginalizadas. É ruim tanto para os desprivilegiados quanto para os privilegiados.

ISTOÉ – Mas essa não é uma particularidade do Brasil.

Sandel – De forma alguma. Costumo contar em aula que quando era criança em Minnesota frequentava estádios de beisebol onde a diferença entre a cadeira mais cara e a mais barata era de US$ 3. Todos comiam o mesmo cachorro quente mole e frio e pegavam a mesma fila para o banheiro. Gente de toda origem social e econômica convivia, se via, se esbarrava. Hoje você tem camarotes caríssimos e as arquibancadas comuns. Os ocupantes não comem as mesmas coisas, não pegam as mesmas filas do banheiro e muitas vezes nem sequer se vêem. O que está acontecendo nos últimos anos é uma “camarotização” do mundo.

ISTOÉ – Na passagem pelo Brasil no mês passado o sr. palestrou na Fundação Lemann e no Papo Reto, coletivo da comunidade do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Conheceu, portanto, um “camarote” e uma “arquibancada comum”, uma distância entre classes maior que nos Estados Unidos. O sr enxerga um caminho para a diminuição do abismo social brasileiro?

Sandel – Sim, é um grande abismo. Mesmo conhecendo pouco o País, se sabe dessa grande desigualdade. O que posso dizer é que fiquei impressionado positivamente com a juventude do Complexo do Alemão. Sinto que essa nova forma de comunicação em rede está fazendo muita diferença para que essas pessoas não estejam mais tão isoladas dos centros de conhecimento.

ISTOÉ – O sr. acha que a iniciativa espontânea dos jovens pobres em se organizar pelas redes sociais será suficiente para tirá-los da margem da sociedade.

Sandel – Essa é uma questão muito difícil. Desejamos que todos nasçam com oportunidades iguais. Isso é um grande ponto de partida na noção universal de justiça social. Mas, veja, as pessoas não nascem com os mesmos talentos, nem com a mesma inteligência. Tenho alunos do Brasil de origem absolutamente desfavorecida e que chegaram a Harvard pela iniciativa, esforço e pela inteligência altíssima. Não afirmo que o Estado não deva apoiar e melhorar a base da vida das pessoas, mas devemos entender que nem no mais absoluto socialismo as pessoas partem de um ponto absolutamente igual. Basta olhar para os grandes jogadores de futebol de vocês. Eles são o que são por conta de seus talentos e não de suas origens.

ISTOÉ – Quando o senhor fala da base está se referindo à família de origem

Sandel – A família faz parte dessa base, mas me refiro especificamente à educação básica. O Brasil concentra seus esforços educacionais no topo da pirâmide, na universidade. Veja, não estou dizendo que da melhor maneira, mas existe uma preocupação muito mais condensada ali, no final da cadeia da formação.

ISTOÉ – Como deveria ser?

Sandel – A educação formal deveria ser muito mais condensada no começo da vida. Na escola e em casa também, a criança precisa ter contato com todas as áreas do conhecimento, incluindo a Ética, que é uma ferramenta necessária desde os primeiros anos. Como uma criança sabe que não deve pegar um doce que não é seu, pegar o carro da família sem permissão ou usar uma arma que achou em casa contra outra pessoa? Tem situações na vida que não são previstas e não cabe a proibição simplesmente. Mas as noções éticas de convivência preparam a criança não só para enfrentar os próprios desafios como para compreender a experiência alheia. A compreensão das ações dos outros é vital para o estabelecimento da noção de justiça.


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