O virologista molecular escocês Mario Stevenson tem 59 anos, mais de 25 deles dedicados à pesquisa sobre o HIV, o vírus responsável pela Aids. Pela primeira vez em quase três décadas de estudos, ele se sente confiante em afirmar que haverá cura para a doença. “Ela virá de ideias inesperadas, surpreendentes”, acredita o pesquisador, professor de Medicina da Universidade de Miami, nos Estados Unidos, e considerado um dos maiores estudiosos do vírus que se tornou um desafio para a ciência. Stevenson baseia boa parte de sua certeza na vitória da medicina contra a Aids no trabalho conduzido pelo colega Ronald Desrosiers, que curou um macaco fazendo com que o organismo da cobaia produzisse anticorpos extremamente potentes contra o HIV. Casado com uma baiana e dono de um português invejável para um escocês, ele esteve em São Paulo para participar do encontro promovido pela Fundação amfAR, maior instituto sem fins lucrativos do mundo envolvido em pesquisa sobre HIV.

Haverá cura para a Aids?

Há um ano eu responderia que não. Mas agora minha resposta é sim. A cura da Aids será possível.

O que mudou em tão pouco tempo, especialmente considerando uma doença que vem sendo estudada há 36 anos?

Estamos conduzindo na Universidade de Miami (Estados Unidos) um trabalho com resultados muito importantes. O cientista Ronald Desrosiers está tentando criar uma vacina para o HIV, para prevenir a infecção, e descobriu que o mecanismo cura a doença em macacos. Há um deles curado. O animal foi tratado um ano atrás e agora não é possível encontrar mais presença do vírus em seu corpo.

Como funciona essa vacina?

Há algum tempo a ciência descobriu que algumas pessoas criam anticorpos muito potentes contra o HIV. Mas não se sabia como fazer com que o organismo produzisse esses anticorpos. Uma das estratégias é tentar vacinas que induzam as mesmas respostas imunológicas, mas hoje agora não conseguimos isso. Desrosiers decidiu que não tentaria criar uma reação que estimulasse a fabricação dessas defesas. Foi por outro caminho.

Qual?

Ele extraiu a informação genética dos genes que determinam a produção desses anticorpos e a colocou em adenovirus (vírus que não causam doenças usados em terapia genética como “carregadores” de DNA até o ponto desejado pelos cientistas). Quando o vírus infecta as células, há a produção de anticorpos potentes, continuamente, e em concentrações muito altas.

Quais os resultados registrados até agora?

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O animal foi infectado com o SHIV (mistura material genético do SIV, o vírus que causa imunodeficiência em macacos, com o HIV, e é usado com fins de pesquisa). Ele tinha altos níveis de carga viral. Depois de uma semana da injeção do adenovírus, a carga viral desapareceu. Foi muito rápido. E, após um ano, foram retirados dele linfonodos (produzem anticorpos), posteriormente colocados em outro macaco. Este animal não foi infeccionado pelo HIV. O macaco está de fato curado. Os dados serão publicados brevemente.

Ele também estava recebendo medicação anti-retroviral?

Não.

Quando serão realizados os testes em humanos?

Devem começar em um ano e meio, dois anos. E aí então saberemos se funcionará.

No que essa vacina se difere das outras que estão em pesquisa?

Não é um antígeno, feito com parte de vírus atenuado para provocar a resposta de defesa do corpo e a consequente fabricação de anticorpos. Trata-se de um vírus que produz anticorpos, e aqueles muito potentes. São dois anticorpos específicos, com propriedades especiais.

De que forma ela consegue superar um dos maiores obstáculos contra o HIV, que é o de fazer com que as medicações alcancem as células nas quais ele fica em estado latente? Os chamados esconderijos?

Muitos cientistas acham que não será possível eliminar totalmente as células infectadas pelo HIV porque o vírus fica latente, escondido, em algumas delas. Não concordo com isso. Na minha opinião, o vírus produz proteínas continuamente, o que permite a identificação dos esconderijos. E esses anticorpos sobre os quais estamos falando atacam esses pontos. Eles podem inclusive entrar no cérebro porque ultrapassam a barreira hematoencefálica (barreira permeável que protege o sistema nervoso central de compostos tóxicos).

Quais são os outros avanços mais significativos contra a Aids?

Temos em estudo a terapia genética. A única pessoa curada do HIV é o berlinense Timothy Ray Brown. Ele tinha HIV e foi submetido a um transplante de medula óssea para tratar uma leucemia. Acontece que o doador apresentava uma mutação genética que impossibilita a produção de uma proteína, a CCR-5. Essa substância permite a entrada do HIV circulante no sangue dentro das células a serem infectadas (as CD-4). Alguns cientistas acham que podem recriar essa situação de uma forma mais segura.

O que acha dessa estratégia?

O transplante de medula tem 30% de mortalidade. Isso acontece porque a imunidade é suprimida e a pessoa fica mais vulnerável às infecções. E também é muito caro. Custa em torno de US$ 200 mil a US$ 300 mil. Não é a cura para a maior parte das pessoas com HIV que mora em locais pobres, como os países da África. Precisamos de uma fórmula e de mecanismos que funcionem em todos os lugares, para os 44 milhões de pessoas infectadas pelo HIV no mundo. Não uma cura só para quem está em Nova York ou em São Francisco (duas cidades americanas).

O desafio de criar soluções médicas eficazes e ao mesmo tempo acessíveis é um dos mais urgentes na medicina. Quais os caminhos para que ele seja superado quando se trata da Aids?

Temos um ótimo recurso contra o HIV que se chama terapia antirretroviral. Mas, apesar disso, muitas pessoas não têm a oportunidade de usar essas medicações. Na Tailândia, as prostitutas entram em uma clínica e em dez minutos saem com os antirretrovirais. Em muitos outros lugares isso é impossível.

O recrudescimento da epidemia em todo mundo está sendo alimentado em boa parte por pessoas, jovens em sua maioria, que não vêem a Aids como uma doença perigosa porque tem remédio contra, e se expõem à infecção. Como mudar essa ideia equivocada?

Em Miami, o grupo no qual há mais novas infecções é o de homens entre 15 e 23 anos. Muitos jovens acham que não serão infectados mesmo se praticarem sexo sem proteção e, se forem, basta tomar uma pílula e pronto. No entanto, isso não é verdade. A vida do paciente será seis anos mais curta se ele não tomar as drogas de forma correta, se não for ao médico no tempo certo. Os medicamentos apresentam efeitos colaterais sérios (aumentam o risco cardiovascular, por exemplo). Cerca de 30% dos doentes fracassam porque não tomam os remédios direito. O vírus fica resistente e eles adoecem. Sem falar que fazer sexo sem camisinha eleva a chance de contaminação por outras doenças sexualmente transmissíveis e de infectar outros indivíduos. As pessoas precisam entender que a vida com Aids não é nada fácil.

Quais as principais lições que os cientistas aprenderam com os estudos sobre a doença até hoje?


São muitas. As pesquisas com os anticorpos, por exemplo, nos dão a lição de que a cura chegará de ideias inesperadas. Uma vacina eficaz será resultado de diferentes tipos de pesquisa. Será algo que não esperávamos que nos levará ao sucesso. O governo dos Estados Unidos está patrocinando vários estudos, mas muitos não estão dando em nada porque são muito focados. É preciso realmente pensar fora da caixa.

Por que defende isso com tanta convicção?

Muitas das grandes descobertas vieram de investigações inusitadas. Veja o último Prêmio Nobel de Medicina (o japonês Yoshinori Ohsumi ganhou o título por suas pesquisas em leveduras, e depois em células humanas, descrevendo como as células fazem a autofagia, processo que permite a elas degradar ou reciclar componentes. O cientista já havia tentado vários campos de pesquisa antes de chegar a esse especificamente). As informações têm de vir de pessoas de diferentes áreas. Às vezes as respostas estão na nossa frente e sozinhos não as enxergamos.


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