Jamais houve na literatura brasileira uma voz feminina capaz de ecoar como a de Clarice Lispector (1920-1977). Judia nascida na Ucrânia, ela chegou ao Brasil no colo da mãe em 1922, quando o movimento modernista dava seus primeiros gritos tropicais. Sem vínculos com a terra natal, gostava de se dizer pernambucana — e foi como brasileira que escreveu a obra hoje considerada a mais influente de uma autora da língua portuguesa. Passados quase 40 anos desde sua morte, frases extraídas dos romances, contos, novelas e crônicas que Clarice escreveu permanecem vivas em citações para todas as ocasiões. “Mude, mas comece devagar, porque a direção é mais importante que a velocidade” é um dos muitos conselhos atribuídos a Clarice que circulam pelas redes sociais. A frase é na verdade de um poema do autor Edson Marques. Como bem definiu Dinah Silveira de Queiroz, “a literatura de Clarice pode ser cortada à vontade, em pedacinhos, porque muito mais que o todo importa o detalhe”.

Pois sintetizar o que ela pensava sobre o amor, a solidão, o medo, a espiritualidade e até seu método para matar baratas é o propósito do tocante “Como Clarice Lispector Pode Mudar Sua Vida” (Büzz), de Simone Paulino, mestre em Teoria Literária e colaboradora do Departamento de Estudos Lusófonos da Université Paris-Sorbonne. O livro chega em boa companhia para os fãs de Clarice: a Editora Rocco acaba de publicar uma edição com ensaios inéditos e manuscritos de “A Hora da Estrela”, sua última obra. O volume traz o texto integral do romance acrescido de rascunhos e anotações feitas à mão, na caligrafia de difícil leitura de Clarice, e análises a cargo de especialistas do Brasil e do exterior.

Vida nas palavras

A edição permite decifrar parte do processo criativo da autora e compreender de que forma ela contribuiu para elevar a literatura brasileira a um patamar inteiramente novo. Por sua natureza acadêmica, os ensaios tendem à erudição, o que pode torná-los um tanto áridos ao leitor habituado à clareza precisa e direta da escritora. Ao propor uma leitura guiada pela emoção, “Como Clarice Lispector Pode Mudar Sua Vida” tem boas chances de cumprir a promessa do título.

Autora de vários livros, entre eles “Minha Mãe, Meu Mundo”, com mais de 400 mil cópias vendidas, Simone Paulino prende o leitor ao compartilhar as transformações que as palavras de Clarice operaram em sua vida. O livro traz capítulos curtos: “Como deixar a vida ser o que ela é”, “Como ser feliz”, “Como ter compaixão” e assim por diante. Cada um deles traz uma citação. Talvez a mais emblemática seja a última: “E com uma palavra podia inventar um caminho de vida”. Não por acaso, “vida” é o significado em hebraico da palavra Chaya, o nome de batismo da imortal Clarice.

 “Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim” Clarice Lispector, A Hora da Estrela
“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim”
Clarice Lispector, A Hora da Estrela (Crédito:Divulgação)

“Se tu puderes saber
através de mim… então aprende de mim, que tive
que ficar toda exposta”
A Paixão Segundo G.H.
“Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada”
Água Viva
“Se só sabemos muito pouco de Deus, é porque precisamos pouco: só temos Dele o que fatalmente nos basta”
Perto do Coração Selvagem
“Eu antes tinha querido ser outros, para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. MInha experiência maior seria ser o outro dos outros. E o outro dos outros era eu”
Para Não Esquecer
“E com uma palavra podia inventar um caminho de vida”
Perto do Coração Selvagem

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“É impossível abafar essa voz”

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Divulgação
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Pela dimensão da obra que deixou, Clarice Lispector criou uma sombra que se projetou por muito tempo na literatura brasileira. Alguns autores até confessaram ser incapazes de prosseguir no ofício após ler seus escritos. “Por saber que é impossível abafar essa voz, eu não procurei escrever como a Clarice, mas com ela”, diz Simone Paulino (foto). “Você pode ler a Clarice racionalmente, mas não é isso o que transforma. O bom é ler sentindo”, diz a autora cujo pai era analfabeto. “Para mim, ela não só foi transformadora como continua a me transformar”.


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