A escultura “O Cão” brilhou na Art Rio 2015 e ganhou projeção como marca da nova fase de inspiração com esculturas do artista visual mineiro João Castilho, famoso pela fotografia. A peça fez parte da mostra “Porcelana e Vulcão”, na galeria Zipper, em São Paulo, onde Castilho reuniu obras inéditas que expandiam sua pesquisa conceitual no campo da fotografia e do vídeo. O sucesso não foi só de crítica, mas também comercial. Quatro réplicas de “O Cão” foram vendidas por R$ 35 mil cada uma. Agora, um ano depois, a menos de 20 dias da Art Rio 2016, “O Cão” foi parar nos tribunais. A obra não foi esculpida por João Castilho, apresentado como o autor. O escultor fluminense Rodrigo Pedrosa esculpiu a peça sob encomenda e reclama na Justiça, por ter sido enganado. De acordo com Pedrosa, Castilho apagou a assinatura dele no modelo original, em plastilina, antes de encaminhar “O Cão” para uma fundição em Belo Horizonte, onde a peça foi reproduzida em resina e pó de bronze. A ação impetrada na Justiça é por crime de plágio e se baseia na Lei 9.610, que regula os direitos autorais e prevê a proteção ao direito de paternidade da obra e não da ideia.

“Ele não deixou clara sua intenção” Pedrosa esculpe “O Cão”.
“ELE NÃO DEIXOU CLARA SUA INTENÇÃO”: Pedrosa esculpe “O Cão”.
Sua assinatura na pata traseira antes da peça ir para a fundição
Sua assinatura na pata traseira antes da peça ir para a fundição

Castilho contesta a acusação, mas não nega que, de fato, quem fez o modelo original de “O Cão” foi mesmo Rodrigo Pedrosa. Diz que a obra é de sua autoria porque foi dele a ideia. Segundo alega, Castilho concebeu a peça desde o momento que encontrou o cachorro real, contratou um adestrador para ensinar o animal a morder a cauda, o que lhe permitiu fotografar a cena e, a partir das imagens, encomendar a escultura. Castilho afirma que contratou Pedrosa para, em suas palavras, “o serviço de parte do processo de construção da obra”, ou seja, para fazer a escultura propriamente dita. Pedrosa, de seu lado, afirma que aceitou uma encomenda. Ele relata que acreditou que participaria do projeto de Castilho com uma obra de sua própria autoria. “Sou um artista, exponho obras no exterior, não teria por que fazer uma obra para outra pessoa assinar”, indigna-se Pedrosa. Ele esculpiu a peça e a vendeu por R$ 3 mil a Castilho. Ao visitar a Art Rio em 2015, diz ter levado um susto ao ver “O Cão” creditado a Castilho. Na ação, ele requer a titularidade da obra.

“SOU UM ARTISTA E FUI ENGANADO”

A primeira audiência pública será em 4 de outubro na 48º Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Desde setembro de 2015, corre um inquérito na Delegacia de Repressão e Combate a Crimes contra a Propriedade Imaterial, no Rio. Castilho afirma que pagou por um serviço de “modelagem em massinha de criança” e que Pedrosa seguiu instruções. “Fui atrás de um modelador e Rodrigo aceitou o serviço de modelagem. Nunca escondi isso”, diz Castilho. “Ele entrou no processo reconhecendo o serviço dele. Limitar uma escultura ao ato de esculpir é voltar 100 anos na história da arte. É jogar Marcel Duchamp no lixo. Sou o autor.” Rodrigo Pedrosa diz que conhece os critérios da arte conceitual contemporânea, mas reforça que esse não é o ponto. “O ponto é que fui enganado. Ele me pediu uma escultura sob encomenda, não deixou clara sua intenção, raspou a assinatura, fez cópias, e usou a foto da minha obra como convite da exposição dele.” Castilho alega que não viu a assinatura de Pedrosa ao receber a peça original.

O escultor fluminense relata que, nos primeiros e-mails, recebeu o pedido de uma “escultura”, e não de “modelagem”. Recebeu as medidas da peça encomendada e o pedido de que a tonalidade fosse escuro, mas reforça que não recebeu projeto ou maquete para executar. As fotos que Castilho lhe mandou eram imagens de um animal vivo. Ele adverte que o fato de aceitar fazer uma encomenda não anula o papel autoral de um artista: “Criei uma obra encomendada por um cliente. Uma encomenda não retira a autoria. Modigliani pintava sob encomenda. Recebia instruções para os retratos.” Pedrosa conta que estruturou toda a peça. Assinou na pata traseira do Cão (foto). Ele continua: “Castilho nunca me disse que assumiria a autoria da escultura. Eu estava feliz de participar da exposição dele com a minha obra numa grande galeria em São Paulo.”

“Tive a ideia e Fui atrás de um modelador” Para Castilho, limitar uma escultura ao ato de esculpir é voltar 100 anos na história da arte
“Tive a ideia e fui atrás de um modelador”: para Castilho, limitar uma escultura ao ato de esculpir é voltar 100 anos na história da arte

João Castilho tem fotos no acervo do Instituto Moreira Salles e do MAR e do MAM-SP. Representado pela Luhda Art, no Rio, Pedrosa expôs na Artexpo Nova York 2016 e tem uma exposição individual, em outubro, em Caravaggio, na Itália. Participou da Bienal Europa America Latina 2015, do Salão de Outono da América Latina 2016, e do Art Shopping 2014 Carroussel du Louvre, em Paris, pela Ava Galery, da Finlândia.

Ao indagar como “O Cão” estaria inserido no projeto, Pedrosa afirma ter ouvido do artista mineiro, por telefone, que a peça iria compor o ambiente da exposição. Castilho rebate: “Não sou decorador para compor ambiente na minha exposição. Se eu não existisse, a obra não existiria. Se o Rodrigo não existisse, eu contrataria outra pessoa para executar o serviço dele”. Pedrosa retruca: “Se eu não existisse, ele enganaria outro artista.”

O caso aqueceu o debate sobre autoria na arte contemporânea. Especialistas sustentam que o sistema é usual. A contratação de artesãos e a compra de peças manufaturadas por outros para compor uma instalação que não será assinada por eles, mas pelo artista que pensou a instalação, são práticas comuns. Nos anos 1970, uma geração de artistas resgatou ideias de Marcel Duchamp, que se apropriava de peças prontas, como reproduções da Monalisa, para comentá-las em uma expressão artística. Daí surgiu a figura do chamado “artista conceitual”, que não necessariamente põe a mão na massa, mas, no linguajar dos críticos, “comenta o mundo artisticamente”. Um exemplo brasileiro recente é a série “Testemunhas Oculares”, de Adriana Varejão, composta de pinturas encomendadas a terceiros e depois manipuladas e finalizadas por Varejão.

Há críticos que não concordam. A principal restrição ao procedimento é a de que esse tipo de expediente minimiza o valor artístico da técnica e hipertrofia o valor do conceito. No processo judicial, os advogados de Pedrosa escrevem: “Se autorizado fosse pensar que quem fez a encomenda da obra é o seu autor, poder-se-ia dizer que o autor da obra que está no teto da Capela Sistina, no Vaticano (A Criação), é o Papa Julius II, e não Michelangelo”. Castilho rebate a tese, com uma citação do filósofo Boris Groys sobre as práticas contemporâneas da obra de arte: “Hoje em dia, o autor é alguém que seleciona, que autoriza. Desde Duchamp, o autor tornou-se um curador. O artista é, antes de tudo, curador de si mesmo, porque seleciona sua própria arte. E também seleciona outros: outros objetos, outros artistas.” A discussão é infinita e delicada. A justiça dará o veredicto.

Ex-curador do MAM-RJ defende sanção judicial

Ex-curador do MAM do Rio de Janeiro, o crítico de arte Marcus Lontra vê o caso da escultura “O Cão” como uma questão judicial, e não um debate sobre autoria na arte contemporânea. “Faltou orientação e informação ao João Castilho para ter essa inserção no campo da escultura”, diz Lontra. “Ele procurou um artista, não um artesão. Não foi claro nos seus propósitos com a obra, inclusive comerciais. O artista procurado teria que ter abdicado dos direitos autorais. Se ele não teve essa autorização, terá que responder as sanções judiciais”.

Fotos: Divulgação; Arquivo pessoal