Comemorou-se há duas semanas o centenário de Roberto Campos. Foi parlamentar, ministro, diplomata e um dos principais economistas do País – tinha um dom premonitório em relação ao Brasil e à América Latina. É olhando justamente para o Brasil de hoje, mergulhado em sua mais grave crise econômica da história republicana, que me é impossível não resgatar a figura de Roberto Campos – e, mais pontualmente, o seu livro de memórias intitulado “A lanterna de popa”. Um trecho: “Fui um bom profeta. (…) Os traços marcantes do intervencionismo do Estado serão a ineficiência e a corrupção, não o idealismo e o progresso”. Pois bem, a bandalheira promovida pelas gestões petistas no governo federal, o ciscar para trás de seus índices econômicos após a maquiagem de resultados positivos e treze milhões de desempregados são filhos legítimos do intervencionismo do Estado, característica bem brasileira, sobretudo a partir do período de Getúlio Vargas — haja vista a criação do sindicalismo pelego do qual o PT ainda se beneficia. Tal intervencionismo, no entanto, jamais sofrera de tão mórbido inchaço como ocorreu nas gestões dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (sobretudo na do primeiro, estrategista desse modelo político).

Prosseguindo agora em meu exercício de resgate do profeta, que concebia a América Latina como um “todo geopolítico”, me vem ao espírito a vizinha Venezuela, escangalhada Venezuela, dois mil e duzentos quilômetros de fronteira conosco e a sua população invadindo o norte brasileiro em busca de pão, água e, quiçá, qualquer bico como atividade que renda algum trocado – ainda que seja a prostituição. Como não pensar no amigável povo da Venezuela?

Dois nomes assinam o esfacelamento daquele país: Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Mas, assim como Dilma foi personagem menor, também Maduro continua na ribalta regido pela fantasmagórica presença de Hugo Chávez. E é aqui, nesse ponto, que surge um instigante paradoxo na história do continente – Lula e Chávez, paralelamente, se aproximam e se distanciam ao mesmo tempo: o que mais os aproximou metodologicamente, na ciência política, foram a prática da demagogia populista de esquerda e a criação de um Estado monstruosamente grande, aos moldes do estamento burocrático governista preconizado pelo socialismo. Lula e Chávez se distanciam, porém, se levarmos em consideração a realidade institucional do Brasil e da Venezuela. As instituições venezuelanas jamais deixaram de ser cambaias sob a batuta de Chávez; já as instituições no Brasil, ainda que os poderes republicanos se percam às vezes nos princípios da independência e da harmonia, são incomparavelmente menos anêmicas. Lula governando a Venezuela e Hugo Chávez governando o Brasil não teriam durado vinte e quatro horas no comando – não que um seja menos autoritário do que o outro; é que o gene político desses dois países é bem diferente. Na Venezuela, por exemplo, o governante age de forma escancarada, e eis registros ilustrativos do passado: os golpes e contragolpes de Chávez antes e depois de se aboletar na presidência em 1999. O vaivém golpista culminou na estatização da poderosíssima petroleira PDVSA, auge do intervencionismo estatal de Chávez, e também a sua débâcle: passou a agradar o mundo barateando o petróleo, e sob o edredom do Estado desenrolaram-se as sacanagens de corrupção (o que ninguém sabe é que um ex-funcionário da PDVSA cantou a bola de que no Brasil estava correndo um rio de lama que desaguaria no mar propinado da Petrobras).

Dei o exemplo do passado, vamos agora a um exemplo do presente a corroborar nossa afirmação de que lá tudo é escancarado: Maduro acaba de revelar, em meio às manifestações que o exigem fora do governo (truculentamente reprimidas, com 25 opositores mortos até a quarta-feira 26), que ampliará de cem mil para quinhentos mil o número de civis nas milícias bolivarianas – e porá um fuzil na mão de cada um desses malucos. Lula, embora caminhando paralelamente com Chávez no intervencionismo, distinguia-se no método, e seus golpes eram mais ardilosos, à base da caneta. Espichou, assim, os tentáculos do Estado a todos os setores, e sob igual edredom ocorreu a mais incrível gatunagem, típica do obscurantismo dos países nos quais o liberalismo é crime. Dou ao leitor, em seguida, um caso do presente (como o fiz com a Venezuela), que também mostra que Lula e Chávez, embora paralelos, viviam se encontrando e se perdendo: Luiz Inácio acaba de arrolar 87 testemunhas em um de seus processos. Ora, quem precisa de tanta testemunha é porque é culpado. Mais: seu único intuito é postergar o veredito do juiz Sergio Moro, entupindo as audiências. De fato, ele é mais ardiloso.

Cotejando-se assim Lula e Chávez, ontem e hoje, cada um em seu território e valendo-se a seu modo do populismo (ambos rumo ao totalitarismo que prescindiria de partidos ao firmar “linha direta” com a população, a ponto de tentarem calar a imprensa), tem-se que o objetivo era o de azeitar ao máximo as engrenagens da corrupção. Na verdade, as políticas de Lula e Chávez poderiam se chamar “a arte de desmantelar economias saudáveis”. Chávez pegou a Venezuela no auge de produção e rentabilidade do petróleo, Lula pegou o Brasil na estabilidade do real. A exemplo de Chávez que fez do petróleo brinde (projeção de 1.700% para a inflação da Venezuela em 2017), Lula gabava-se de dizer que no País não havia um pobre que não possuísse três celulares – mas omitia o fato de que esses pobres não tinham dinheiro para colocar créditos nos aparelhos. Foi a época dos “celulares pai de santo: só recebiam”. Quanto a carro e apartamento, com financiamento de mão beijada (que coisa, né Lula?), estão sendo devolvidos (né Lula?) porque a inadimplência veio com o estouro da bexiga da festa do lulopetismo.
Chávez e Lula sempre exibiram como credencial a pobreza da infância (o que não é demérito para ninguém): os dois foram meninos que tiveram de trabalhar para ajudar o sustento de enormes famílias e nasceram em abandonados lugarejos: Chávez em Sabaneta, Lula na pernambucana Caetés. Registre-se que nunca cometeram um deslize na adolescência – trabalharam duro, e, se naquele tempo houvesse punição para bullying, seria punida a meninada que colocou em Chávez o apelido de pateta devido aos seus pés compridos, finos e com dedos levantados. Vindo o interesse pela política (ai,ai,ai), Chávez seguiu o caminho da farda, Lula rumou para o sindicalismo. É claro que no Hugo Chávez das quarteladas da juventude já morava o demagogo Hugo Chávez do Palácio de Miraflores; e no jovem Lula das greves do ABC já habitava o demagogo Lula do Palácio do Planalto. E é isso, sobretudo isso, que os faz paralelos. Um espelha o outro. Ou como disse Roberto Jefferson na semana passada: “A Venezuela de hoje é a representação do que o PT e seus amigos da esquerda queriam para o Brasil. Ditadura, imprensa calada, povo acuado”.