De um extremo ao outro da ilha, todo cubano tem certeza que haverá um mínimo de comida em sua mesa graças à caderneta de abastecimento, símbolo de igualitarismo e escassez que Raúl Castro tentou eliminar em vão.

Castro conclui seu mandato em 24 de fevereiro, e nada indica que a caderneta será encerrada antes disso.

Por trás da tentativa frustrada de desfazer o sistema, está o maior desafio da ilha socialista: abrir sua economia sem voltar ao capitalismo, caminho iniciado por Raúl Castro que deve ser seguido por seu sucessor.

O maior sucesso da Revolução Cubana ou seu fardo mais oneroso? A caderneta de abastecimento é o retrato da variedade de visões que cabem na Cuba atual.

– Origem –

O ano era 1963. Cuba tinha desapropriado bens americanos e começava a penar com o embargo comercial ainda vigente. Diante do desabastecimento, a Revolução se valeu de uma medida de guerra: o subsídio e o racionamento de alimentos.

Deste então, sem distinções, cada lar cubano recebe mensalmente alguns alimentos básicos, pelos quais paga 10% do valor real de mercado. Com o salário médio em cerca de 29 dólares, completar a cesta é difícil.

Quando a União Soviética acabou, Cuba enfrentou um período de abertura econômica lenta e cautelosa, ampliada por Raul Castro.

O subsídio anual de alimentação para os 11,2 milhões de habitantes é de cerca de 1 bilhão de dólares. Em 2011, Castro justificou o encerramento gradual da caderneta por ser “uma carga insuportável” para o Estado, desestimular o emprego e gerar ilegalidades.

– ‘Perda de significado’ –

Em Cayo Granma, no leste de Cuba, vivem 1.200 pessoas, a maioria pescadores. De sua única loja, saem cubanos com bolsas praticamente vazias, alguns só com pães nas mãos.

Noel Santiesteban, professor aposentado de 65 anos e cadeirante, afirma que a “carteira” é “a garantia de que vai ter o que botar na mesa, ainda que bem pouco”.

A caderneta está enfraquecida. Hoje, chegam ovos e porções de óleo, arroz, açúcar, feijão, pão, frango e café, que mal duram duas semanas. Antigamente, até os cigarros estavam compreendidos no pacote.

“Isso não deve ser visto como uma derrota, mas a caderneta está perdendo seu significado”. Santiesteban recebe o equivalente a 12 dólares por mês e acredita que a economia deve melhorar assim que ela for encerrada.

Como vai se sentir quando isso acontecer? “Como quando uma velha namorada vai embora. Você não queria que ela fosse, mas fica feliz que ela tenha partido”.

– ‘Todo mundo come’ –

Esther Rodríguez e seu marido cultivam mangas e criam porcos em El Caney, uma das mais altas montanhas do oriente cubano. O Estado compra a maior parte de sua produção. Uma boa colheita rende até 125 dólares.

Esther tem 61 anos e uma caderneta para quatro pessoas, embora só duas comam na sua casa. “Foi a melhor coisa, porque todo mundo come. Se encerrarem, os problemas vão voltar”.

E se deixarem apenas para os mais pobres? Seria “dividir o país em dois, um com caderneta e outro sem, mas Cuba é uma só, é todo mundo ou nada”, responde. Cerca de 70% da população nasceu após a Revolução Cubana.

– Desigualdade –

Luis Silva é o humorista mais famoso de Cuba. Aos 39 anos, interpreta Pánfilo, um aposentado mordaz. No ano passado, atuou com Barack Obama, durante a histórica visita do ex-presidente americano.

Num de seus espetáculos em Havana, Pánfilo canta “ponham a caderneta em um panteão/porque ela já cumpriu a sua função”. O público gargalha.

“As pessoas já esqueceram um pouco dela. Ainda seguem usando, é claro, mas me parece que ninguém pode viver com o que dão” na cesta, afirma.

Seria o fim do símbolo da igualdade? “De alguma forma, há desigualdade antes dela desaparecer. Ainda nem foi encerrada e já tem gente que não precisa da caderneta, não pega nada” do que oferecem, reflete.

Em sua casa, garante que ainda a utiliza.

– ‘Um fóssil’ –

“É um sistema bastante obsoleto”, opina Pavel Vidal. “Um fóssil”, completa Mauricio de Miranda. Ambos são economistas e professores cubanos radicados na Colômbia. O primeiro afirma que Castro só não acabou com a caderneta porque essa é uma medida impopular. E argumenta: o Estado emprega 70% da mão de obra, enquanto a economia e os salários não melhorarem, vão depender dos “subsídios universais para não caírem na miséria”.

De Miranda acredita que seria melhor dar subsídios às pessoas necessitadas, em vez de aos produtos. “Qual o sentido de permitir que uma pessoa com salário relativamente alto compre ovos baratos?”. Mas, ainda assim, completa, Cuba não muda o sistema porque vive submersa no cálculo econômico e no custo político.

“É uma medida que foi sendo adiada e vai sobrar para a próxima geração de líderes cubanos”, arremata Vidal.