O homem que liderou uma das caçadas mais notórias contra traficantes no século 20 advoga pela descriminalização de “todas as drogas”. Mas não é bem de agora que César Gaviria, presidente da Colômbia entre 1990 e 1994 – em 1993, Pablo Escobar foi morto por forças policiais -, é conhecido por ser uma voz relevante do antiproibicionismo mundial. Aos moldes do que ocorreu com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), ele dedicou parte do seu tempo após ter deixado o poder para estudar e militar contra a política de drogas ainda vigente em diversos países, incluindo o Brasil, de criminalizar o uso e a posse de entorpecentes, envolvendo mais polícia do que médicos no combate à prática.

O modo de tratar o assunto ficou conhecido, ainda no século passado, como “guerra às drogas”, um modelo eminentemente patrocinado pelos Estados Unidos. Foram deles que o governo colombiano nas décadas de 1980 e 1990 recebeu bilhões de dólares para tentar erradicar plantações de coca que representavam, e ainda representam, a mais significativa produção mundial de cocaína.

“A Guerra às Drogas é invencível e precisa acabar”, disse Gaviria ao jornal O Estado de S. Paulo em uma entrevista por e-mail.

Ele passa neste mês por São Paulo e Rio de Janeiro, a convite do Instituto Igarapé, debatendo o assunto. Nesta segunda-feira, 27, estará ao lado de Fernando Henrique, de um evento sobre reforma da política de drogas na América Latina na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), em Higienópolis, na região central da capital paulista.

Gaviria conversou com a reportagem sobre o papel brasileiro no tema, que classificou como “ausente”, e a relação da política de drogas com a quantidade de presos no País. “Reformar essa política está no centro da retomada do controle”, acrescentou.

Na entrevista, o ex-presidente colombiano comenta ainda a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) nessa pauta, além de iniciativas de redução de danos para viciados, como o programa “De Braços Abertos”, do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT): “Se nós, como comunidade, não queremos mais estender a mão para nosso vizinho, então não resta muito mais dessa comunidade”.

Leia a seguir a entrevista com o ex-presidente, retratado na série da Netflix Narcos, sobre a qual ele preferiu não comentar a fidedignidade do roteiro e das atuações.

O Brasil tem vivido uma rotina trágica nas suas prisões. Essa realidade foi mostrada de forma ainda mais brutal desde o começo deste ano, quando mais de uma centena de presos foram assassinados por colegas, no que foi considerado uma briga entre facções em nível nacional. O que ajuda a explicar essa realidade?

O que tenho escutado sobre as prisões brasileiras me choca, não só pelas suas condições estruturais, mas também quanto ao tamanho da população carcerária e as razões pelas quais as pessoas estão sendo presas. Deve-se manter em mente que as prisões são parte de um sistema maior: o sistema de segurança pública e justiça criminal. O Brasil precisa parar e pensar se o sistema como funciona atualmente é guiado pelo interesse público e se é eficiente. Reformar a política de drogas está no centro da retomada do controle.

Em um artigo escrito recentemente para o jornal americano “The New York Times”, você abordou esse tema, dizendo que “prender criminosos não violentos e usuários de drogas quase sempre é um erro, que, na contramão, fortalece o crime organizado”. Como esse fortalecimento é notado na prática?

Há dois lados para essa questão que nós, na Colômbia, aprendemos do jeito difícil. Um é que, ao prender criminosos não violentos e usuários de drogas, estamos entregando nossa juventude nas mãos do crime organizado, ao encarcerá-los junto a criminosos violentos em celas controladas por gangues. Uso de drogas não deveria ser considerado um crime, e traficantes pequenos poderiam ser sentenciados a penas alternativas. Eles não deveriam ficar presos. O outro lado da questão é perder contato com o que realmente importa: reduzir a violência e desmantelar esses grupos criminosos violentos. Nossas polícias são guiadas para combater o tráfico de pequenas quantidades de droga no lugar de focar em reunir inteligência para atacar a rede de crime organizado e resolver crimes violentos.

Ainda no seu artigo, você reafirmou o conhecimento comum sobre a representatividade da produção colombiana de cocaína para o mundo. Recentemente, um dos massacres em cadeias aconteceu em Manaus, e teve a autoria atribuída à Família do Norte. Investigações apontaram como o contato com os colombianos facilitou o desenvolvimento da quadrilha. Qual a dimensão do problema de fronteira para Brasil e Colômbia e como isso pode comprometer a implementação de planos de segurança na área?

A Amazônia é ao mesmo tempo uma bênção e um desafio que dividimos. A densidade da floresta oferece a perfeita camuflagem para o contrabando e o tráfico. A desmobilização das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), parte do processo de paz do meu país, deverá afetar a dinâmica da oferta de cocaína por meio da região. Mas fechar as fronteiras não é só algo perto de impossível, já que as pessoas as atravessam por terra, água e ar, como também é ineficiente. A maneira de avançar é por meio da cooperação, inteligência e troca de informações entre os dois governos, assim como criar estratégias para enfrentar a estrutura ilegal, como aeroportos, que se espalham na floresta.

Você esteve no centro de uma das operações de busca mais conhecidas do século 20 contra o agora ainda mais famoso Pablo Escobar. Por anos, você esteve à frente das decisões sobre a política de drogas, gastando bilhões de dólares e prendendo inúmeras pessoas. Assim como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, você agora é uma das vozes fundamentais contra a política proibicionista. Quando e por que o seu posicionamento mudou?

Confrontar o cartel Medellín e o narcoterrorismo era um problema de sobrevivência para a democracia colombiana e para o bem público de todos os colombianos. Lutar contra os cartéis é uma obrigação para todos os países. Criminalizar o consumo, campesinos e os cidadãos não violentos é um erro e uma política de drogas errada.

Para o “Times”, você falou que “adotar a linha dura contra criminosos é sempre popular para os políticos”. Como você avalia a influência popular nas decisões quanto a guerra às drogas e à caçada a Pablo Escobar? Naquele momento, o senhor já tinha ideia da necessidade de mudança da política de drogas?

Sabia que tinha de fazer alguma coisa e a informação a minha disposição me levou a acreditar que eu estava fazendo o melhor. Como disse, depois notei que não estávamos vencendo a guerra às drogas. É invencível. Há muitos custos envolvidos, muitas vidas e famílias destruídas. Mas aquelas agora no poder têm muito mais informações disponíveis para o que está muito claro agora: a guerra às drogas precisa acabar.

O ex-ministro da Justiça do Brasil Alexandre de Moraes chegou a expor em uma reunião, em que apresentava as linhas para o plano nacional de segurança, que um dos seus objetivos era atacar frontalmente a produção de maconha em parceria com o Paraguai, a Colômbia e a Bolívia. Que conselho você daria ao País sobre esse tipo de combate?

Erradicar a produção em um lugar resulta em um aumento da produção em outro. Portanto, isso não é a resposta. Desenvolvimento sustentável e produção de plantios alternativos devem ser priorizados, particularmente nos degraus mais baixos da cadeia de produção. Quanto ao tráfico internacional, a resposta é reforço na inteligência e foco nas redes do crime organizado. Isso é muito mais eficiente.

Recentemente, o debate sobre a proibição do uso e porte de drogas parece ter ganhado mais atenção, principalmente no STF. A Corte agora discute a possibilidade de deixar de considerar crime a posse de uma pequena quantidade de drogas. Um dos pontos em debate está relacionado com o que significa “pequena quantidade”. Sobre isso, duas questões: 1) O que pensa sobre esse tipo de discussão ser liderada pelo Judiciário?; 2) O que pensa sobre essa quantidade ideal para descriminalização?

Quando o Legislativo nem o Executivo assumem esse importante papel de por um fim à criminalização da posse de drogas para uso pessoal, a Suprema Corte deve intervir. O mesmo ocorreu no meu país em 1994, quando a Corte Constitucional descriminalizou a posse para dose pessoal de drogas, como chamamos. Eles tiveram de reafirmar a decisão novamente nos anos 2000, depois que uma reforma constitucional tentou voltar a tornar crime a posse de drogas. Quanto a adotar parâmetros para identificar o que seria exatamente essa posse para uso pessoal, há uma ferramenta mundial adotada com relativo sucesso em diversos países. A chave aqui é ter limiares compatíveis com o padrão de consumo nacional, ou irá ocasionar um erro entre as equipes de segurança. No México, por exemplo, onde esse parâmetro é muito baixo, a descriminalização falhou e mais pessoas acabaram sendo presas.

Um dos ministros do STF chegou a dizer que a discussão deve evoluir para, no futuro, abarcar a descriminalização de outras drogas, como a cocaína. O debate está avançando neste sentido em outros países?

Esse deve ser o ponto inicial do debate. Entendo que o caso em questão demanda descriminalização da posse para uso pessoal independente do tipo de droga. Se abordarmos o assunto de uma perspectiva da saúde pública, não faz sentido considerar crime o uso de uma droga, mas de outras não. Um alcoólatra é um criminoso? A resposta é não. Então, por que viciados em drogas ilícitas deveriam ser? Criminalizar o uso de drogas inibe a prevenção, programas de redução de danos e acesso a tratamento. Então, o uso de todas as drogas deve ser descriminalizado, especialmente aquelas que podem causar os maiores danos.

Assistimos ao desenvolvimento recente de políticas sobre o assunto no Uruguai, em países europeus, alguns Estados americanos e no Canadá. O assunto no Brasil é tratado por meio da Constituição, impedindo discussões individualizadas por Estado. Qual o papel que o Brasil tem assumido nesse tema?

O Brasil não tem tido uma voz forte em nível internacional. Isso ocorre, apesar da sua relevância regional, que acaba se resumindo a falar sobre os desafios relacionados à política de saúde, dividindo experiências com outros países sobre redução de danos. Mas, quando se fala em tratar do desafio de reformar a política de drogas de um modo significativo, o País é ausente no lugar de se juntar aos vizinhos mais participativos como México, Colômbia, Uruguai e Canadá. As Américas estão na linha de frente da discussão, mas o Brasil está ficando para trás.

O ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad implementou uma política de redução de danos para viciados em crack, no programa De Braços Abertos. Como municipalidades devem abordar o tema?

Políticas de redução de danos, como a desenvolvida pelo ex-prefeito, devem ser uma parte importante de qualquer política de droga responsável, junto com a prevenção e tratamento. Já que não podemos acabar com o consumo de drogas, podemos reduzir os riscos envolvidos no seu uso e até relacionados ao seu abuso. E prefeitos estão no centro desse tipo de ação. Há ainda muitos mal-entendidos sobre redução de danos como uma política, algumas pessoas até declaram que isso termina estimulando o uso de drogas. É um mito, um mito perigoso. A redução de danos mantém pessoas vivas e lhes estende a mão. Se nós, como comunidade, não queremos mais estender a mão para nosso vizinho, então não resta muito mais dessa comunidade.

Serviço

Agenda de César Gaviria no Brasil

27 de março (São Paulo): Evento público às 19 horas na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), com Fernando Henrique Cardoso, sobre reforma da política de drogas na América Latina.

28 de março (São Paulo): Lançamento às 9h30 no Instituto Fernando Henrique Cardoso de relatório da Comissão Global sobre Política de Drogas, com o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso.

29 de março (Rio de Janeiro): Evento no Palácio Itamaraty às 10h30 sobre reforma da política de drogas na América Latina.

29 de março (Rio de Janeiro): Para convidados, no Parque Lage às 19 horas, participa de debate sobre o tema, com lançamento do livro Drogas: as histórias que não te contaram, de Ilona Szabó.