O escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) é tanto um mito literário do século 20 como uma espécie de unguento para os males da inspiração dos intelectuais. “Sim, Borges é a panaceia universal”, afirma Jorge Schwartz, crítico e professor de Literatura da USP. “Clássicos como Cervantes, Kafka, Fellini também viraram panaceia. Não dizemos hoje ‘quixotesco’, ‘kafkiano’ ou ‘felliniano”, sem precisar conhecê-los?”

Que significa “borgiano”? Quem foi o ser humano Borges? Onde se fundamenta sua erudição? São perguntas que Schwartz responde em “Borges Babilônico — uma Enciclopédia” (Companhia das Letras), que levou duas décadas para organizar, com
a colaboração de 60 especialistas. O volume com 580 páginas compreende mil verbetes que, percorridos, permitem conhecer as fontes do saber “borgiano”. O livro oferece imagens e definições sobre obras, personagens, mitos, artistas, cientistas e filósofos que ele menciona, bem como entradas para temas que o preocuparam, como “matemáticas”, “felicidade” e “valentia”“.

AMOR Borges, aos 85 anos, com a companheira María Kodama em São Paulo, em 1984 (Crédito:Renato dos Anjos/Folhapress)

Mas não esgota o assunto.

“Não é possível descobrir hoje um novo Borges”, diz Schwartz. Ele propõe um “outro Borges”, humano, feliz e até autocomplacente. Apesar da reputação de erudito, ele aprendeu nos livros (ficou cego aos 50 anos e passou a contar com secretárias que liam para ele) e nas mesas dos cafés portenhos, entre poetas, atrizes e malandros. Foi apaixonado pelas mulheres, as tradições argentinas e, acima de tudo, a cultura universal.

Nome errado

O volume traz uma anotação que Borges redigiu sobre si próprio como epílogo da edição das “Obras Completas” de 1974. Planejado para constar de uma certa “Enciclopedia Sudamericana” a ser publicada no Chile em 2074, erra o nome de propósito, grafando-o assim: “Borges, José Francisco Isidoro Luis: autor e autodidata, nascido na cidade Buenos Aires, então capital da Argentina, 1899. A data de sua morte é ignorada, já que os jornais, gênero literário da época, desapareceram durante os magnos conflitos que os historiadores locais agora compendiam.” Adiante: “Agradava-lhe pertencer à burguesia, atestada por seu nome. A plebe e a aristocracia, devotas do dinheiro, do jogo, dos esportes, do nacionalismo, do sucesso e da publicidade, pareciam-lhe quase idênticas. Em 1960, filiou-se ao Partido Conservador, porque (dizia) é indubitavelmente o único que não pode suscitar fanatismos.”

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No verbete “Brasil”, figura um fato ignorado por muitos estudiosos. Em agosto de 1984, Borges e a companheira María Kodama visitaram São Paulo para participar de palestras e encontros. Schwartz ciceroneou o casal. Dos encontros, lembra, “saiu todo mundo enfeitiçado pela figura quase messiânica naquele momento, Borges cego e aos 85 anos de idade”. Ele recorda uma curiosidade: “No hotel Maksoud, onde se hospedou, ele gostava de tomar o café da manhã no salão da entrada, com María Kodama. Sempre elegante, de terno e gravata, ele poderia tomar o café no quarto. Borges adorava ter interlocutores, e eu não perdi a chance de chamar amigos para vê-lo tomando o café, mesmo que não conseguissem chegar perto dele para conversar. Essa, eles me devem!”

O episódio não consta do volume. Mas outro ainda mais obscuro é registrado ali: a visita de 1984 foi a terceira que Borges fezao Brasil. Quando criança, foi a Santana do Livramento, onde testemunhou o assassinato de um gaúcho. Em agosto de 1970, viajou a São Paulo. Na ocasião, ministrou uma palestra no Curso de Madureza Santa Inês, no bairro da Liberdade. Segundo Schwartz, ainda existe um registro sonoro desse “fato quase fantástico”.


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