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Todos os dias , pontualmente às 5 da tarde, carros superesportivos e SUVs de luxo, a maioria com vidros fumê e rodas cromadas, invadem o campus da Universidade West Indies, em Kingston, a quente e úmida capital da Jamaica. Em alto e bom som, ao ritmo de reggae e hip hop de Snoop Dog e Pharrel Williams, estacionam ao lado da surrada pista de atletismo que, nos últimos anos, se tornou o principal centro de treinamentos dos melhores velocistas da ilha de Bob Marley. Não demora muito para aparecer um Nissan GT-R dourado, o carro mais ágil do mundo, que faz de zero a 100 km/h em 2,9 segundos. De dentro dele sai Usain Bolt, o homem mais rápido de todos os tempos, que cumprimenta, um a um, cada “parça” que o acompanha por todos os lados, nos treinamentos, nas baladas e nas festas barulhentas no quintal de casa.

Até escurecer, cerca de três horas depois, Bolt faz um treinamento intenso. Seu técnico, o também jamaicano Glen Mills, analisa cuidadosamente cada movimento de Bolt, desde a posição de corpo na linha de largada até o balanço dos braços nos últimos 10 metros, perímetro que consiste no ponto forte do velocista. Mills, apesar da aparência simplória, sorriso desdentado e um cômico humor rabugento, é um dos mais respeitados treinadores da Jamaica.

A rotina de treinamentos do Homem-Relâmpago, que angariou seis medalhas de ouro nas duas olimpíadas que disputou, se intensifica quanto mais se aproximam os Jogos do Rio. Além de buscar o tricampeonato, feito jamais alcançado por qualquer outro atleta, nas três modalidades que disputará – 100 e 200 metros rasos e revezamento 4×100 –, Bolt quer superar seus recordes individuais: 9s58 nos 100 e 19s19 nos 200 metros. Ele também está confiante que levará o ouro no revezamento ao lado dos compatriotas Nesta Carter, Michael Frater e Yohan Blake. “Preciso fazer o meu melhor no Rio para escrever o meu nome ao lado das maiores lendas do esporte, como Pelé, Muhammad Ali e Michael Jordan”, disse Bolt em entrevista à 2016.

 

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A caminho da Rio-2016: Bolt vem de uma série de lesões e, no Mundial de 2015, levou o ouro por um ínfimo centésimo de segundo. Nunca foi tão difícil se manter no topo

Prova de que Bolt não medirá esforços para conquistar o ouro e consolidar o seu nome no Olimpo do esporte foi a lesão na coxa, sentida durante o campeonato Cayman Invitational, em meados de maio. Embora tenha vencido os 100 metros com o tempo de 10s05, deixando para trás o americano Dentarius Locke e seu companheiro de treinamento, Kemar Bailey-Cole, Bolt pediu para ser levado à Alemanha, onde vive seu médico de confiança, Hans-Wilhelm Müller-Wohlfahrt.

O “doctor miracle”, como Bolt o chama, é ex-médico do Bayern de Munique e já atendeu vários atletas de ponta. O próprio jamaicano havia se tratado com ele, em 2010, após fortes dores nas costas. Apesar do recente susto, Glen Mills garantiu que Bolt estará “de qualquer maneira” na Olimpíada do Rio. “Ele disputará e ganhará todas as medalhas que estiverem disponíveis”, disse Mills.

Não será uma tarefa fácil manter-se no topo. Aos 29 anos, Bolt parece não ter mais a energia de antigamente. O recorde mundial dos 100 metros, de 9s58, data de 2009. Desde então, seus tempos só pioraram. Não é todo dia que um atleta sai por aí quebrando marcas, mas Bolt tem corrido muito longe de seus melhores tempos. No último Mundial, em 2015, conquistou o ouro por uma diferença de apenas um centésimo para o segundo colocado, o americano Justin Gatlin. Como Gatlin, o também americano Trayvon Bromell tem sido mais regular que Bolt nas duas últimas temporadas. A favor do jamaicano consta o próprio currículo.

Para a nova geração de jamaicanos, ele já é tão lendário quanto Bob Marley
Para a nova geração de jamaicanos, ele já é tão lendário quanto Bob Marley

 

Ninguém, afinal, é Bolt por acaso. Basta para ele estar alinhado na pista para amedrontar os rivais. Resta saber se isso será suficiente no Rio. Bolt mantém uma rotina simples na Jamaica, apesar da fama e da fortuna conquistada nos últimos 10 anos. Está sempre perto dos pais, Wellesley e Jennifer Bolt , dos irmãos Sadik e Shirine, dos amigos de calças largas que vivem mascando chicletes e da namorada “misteriosa”, que ele evita expor em eventos sociais ou nas ruas. “Não vou contar quem é”, diz Bolt. “Se contar, ela perde o sossego.”

O maior velocista de todos os tempos garante que, para ter o melhor rendimento nas pistas, precisa estar cercado das pessoas que o acompanham desde a infância e manter os mesmo hábitos de antes da fama. “Não posso viver em outro país, conviver com outras pessoas e comer coisas que eu não gosto”, diz o jamaicano, sorrindo.

Ele faz questão de manter costumes que cultiva desde a infância. Um deles é comer, no café da manhã, uma fruta local chamada ackee, espécie de açaí jamaicano. Além de fornecer energia e ter alto índice de proteínas, o ackee, assegura o multicampeão, possui propriedades medicinais. Detalhe: se consumida antes do tempo correto de maturação, a fruta é venenosa e pode levar à morte. “A falta do ackee é o maior perigo”, diz Bolt. Ele é mesmo um sujeito cheio de manias. Na Olimpíada de Pequim- 2008, o jamaicano comeu, diariamente, 100 nuggets de frango do McDonalds – foram mil nos dez dias que ficou na China. Tinha receio de que a culinária local, famosa por causar desarranjos intestinais em estrangeiros, pudesse comprometer a conquista do ouro.

A simplicidade na rotina e no cardápio do atleta mais bem pago do mundo, com fortuna estimada pela revista americana People With Money em US$ 327 milhões e reforçada pelo salário anual de US$ 82 milhões, não significa que Bolt é um desapegado de bens materiais. Na garagem de sua mansão de 530 m², em um bairro de alto padrão nos arredores de Kingston, uma coleção de sete supercarros de luxo – seis pretos e um dourado – comprovam que a paixão por velocidade vai além das pistas de atletismo. “Amo carros, futebol, videogame e, é claro, a Jamaica”, afirma.

O apego às raízes é o que mantém Bolt em sua terra natal. Em diversas ocasiões, o atleta foi convidado a viver e treinar nos Estados Unidos e Europa, especialmente na Alemanha. Quando tinha 14 anos, um olheiro da marca alemã de artigos esportivos Puma enxergou o talento do jamaicano em uma competição interescolar no Estádio Nacional, em Kingston. Desde então, a empresa patrocina o atleta, presta suporte médico e consultoria de treinamento. Em 2016, a Puma depositará US$ 10 milhões na conta de Bolt, valor equivalente ao que a americana Nike paga ao tenista espanhol Rafael Nadal. “Mais do que um embaixador da marca, Bolt nos ajuda a desenvolver novos produtos e tecnologias na Jamaica e em nossos centros de pesquisa na Alemanha”, diz Fábio Kadow, diretor da Puma Brasil.

O contrato da Puma com Bolt será mantido, segundo a empresa, mesmo depois que o atleta pendurar as sapatilhas. A grife alemã também mantém relação vitalícia com outras estrelas do esporte, como Maradona e Boris Becker. Além da Puma, Bolt tem contrato com 16 companhias. Entre as maiores estão a montadora japonesa Nissan, a suíça Hublot, o banco brasileiro Original, as operadoras de telefonia Optus (Austrália), Celcom (Malásia) e Digicel (Irlanda), além da Virgin Media, maior companhia de tevê por assinatura do Reino Unido, do bilionário Richard Branson. O mais recente patrocinador do atleta, em contrato assinado no mês passado, é a companhia aérea japonesa All Nippon Airways (ANA), que pagará cerca de US$ 4 milhões por ano, até 2020, para Bolt promover os Jogos Olímpicos de Tóquio.

“O Usain Bolt é uma peça fundamental nos planos da Puma para se igualar às rivais Nike e Adidas em exposição de imagem”, afirma Nigel Currie, diretor da empresa britânica brandRapport. Apesar do apelo dos patrocinadores, o jamaicano não abre mão de treinar na velha pista de atletismo de West Indies, nos sucateados aparelhos de musculação do ginásio do Estádio Nacional e de frequentar a casa dos amigos nas perigosas periferias da capital. “Seja qual for o país de residência de Bolt ou a sua rotina pessoal, ele é, indiscutivelmente, o maior nome do esporte mundial nos dias de hoje”, afirma Felipe Iacocca, diretor da IWM Agency, maior agência de marketing de influência do País. “Todos querem associar sua marca à imagem de Bolt porque é um atleta com superpoderes, um humano que transformou o impossível em realidade, quase um ideal grego de perfeição olímpica.”

Bolt tem a seu favor a genética e um biotipo raro, que foge do padrão dos velocistas, normalmente mais baixos e muito fortes. Bolt é alto e magro: 1,96 m e 86 kg. A característica é uma herança dos ancestrais que colonizaram a ilha caribenha. Durante mais de 200 anos, escravos africanos fugiram de diversos países da América Latina em busca de um local seguro, fora dos domínios dos impérios espanhol e britânico. Em barcos improvisados, escapavam para a Jamaica, terra dos hospitaleiros índios aruaques. Muitas vezes ficavam à deriva por meses ou morriam afogados. Há relatos no país de homens e mulheres que nadaram por duas semanas para chegar às praias da ilha. Os mais fortes chegavam em terra firme e constituíam família. A Jamaica acabou dominada pelos ingleses, mas, como havia um espírito de liberdade na formação da sociedade, as rebeliões eram diárias. Em 1938, o país se tornou independente.

Muitos anos depois, a Jamaica se tornou terra de supervelocistas e de um povo orgulhoso de suas conquistas. Bolt é a maior celebridade no país de Bob Marley e referência para as novas gerações. Sua imagem é onipresente na rotina da pequena ilha caribenha – há cartazes e fotos dele nos pontos de ônibus, nas vitrines das lojas, nas fachadas dos prédios e até em hospitais. No Aeroporto Internacional Norman Manley, em Kingston, a imagem de Bolt e outros atletas da ilha dividem espaço com o retrato de Bob Marley, a quem, para os mais jovens, Bolt se equivale. Apesar de ainda não se considerar um mito do esporte, Bolt sabe que, no mínimo, está a caminho. “Quero ser uma lenda e estar à altura de meus ídolos, mas ainda tenho que correr muito para alcançar esse patamar”, diz.

Qualquer que seja o desempenho de Bolt no Rio, uma coisa é certa: esta será a sua última Olimpíada. Ele já tem planos para a aposentadoria. Depois de escrever em definitivo o seu nome na história do esporte, pretende se dedicar à filantropia. Atualmente, possuiu uma fundação em sua cidade natal, Sherwood Content. Lá, cerca de 200 crianças estudam e treinam para, um dia, defender a reputação do atletismo da Jamaica em Jogos Olímpicos. A ideia é ampliar o projeto. “Vou levar essa experiência para outras partes da Jamaica e até para outros países”, afirma Bolt. “Quero ser recordista também fora das pistas.”

“QUERO SER UMA LENDA COMO PELÉ”

Homem mais veloz todos os tempos, o jamaicano Usain Bolt acredita que poderá melhorar ainda mais os seus recordes – embora seja uma tarefa, biologicamente, quase impossível. Aos 29 anos, Bolt planeja pendurar as sapatilhas em 2017. Na Jamaica, ele contou à 2016 como está se preparando para disputar a última Olimpíada e como administra o sucesso com a vida pessoal.

Rápido como um guepardo: Bolt afirma que nunca esteve tão bem preparado
Rápido como um guepardo: Bolt afirma que nunca esteve tão bem preparado

 

2016_ Por que você faz questão de se preparar na Jamaica, com pouca estrutura, se pode escolher centros de treinamento mais modernos nos Estados Unidos e na Europa?

Usain Bolt_ A Jamaica é minha terra. O clima quente e úmido é ideal para mim. Além disso, preciso estar perto da minha família e de meus amigos para me concentrar. Meu povo olha para mim e se inspira na minha vida para buscar uma vida melhor. Quero e preciso estar perto deles para inspirar e ser inspirado.

_Você teme que seu recorde possa ser batido por alguém?

_No esporte, tudo é possível. Então, bater meu recorde também. O meu tempo de 9s58 é uma marca muita dura e exigente, mas os recordes existem para serem batidos. Eu mesmo posso superar as minhas melhores marcas. Sempre acho que consigo ser mais rápido. Vamos ver.

_A Rio 2016 será sua última Olimpíada?

_Sim. Não fico pensando o tempo todo sobre a aposentadoria. É algo inevitável, mas preciso estar concentrado nos meus treinamentos. Estou muito bem fisicamente. Mesmo assim, é importante parar quanto se está no auge.

_Sua aposentadoria não poderá ser adiada?

_Será difícil manter a motivação para competir em 2020.

_Mesmo na Jamaica, pouco se sabe de sua vida pessoal. Essa discrição é parte da sua personalidade ou surgiu depois do sucesso?

_Sempre fui assim. Gosto de receber meus amigos em casa, fazer festas com quem gosto de estar, ouvir Bob Marley com a minha família. Quando estou sozinho, vejo filmes com a minha namorada e jogo videogame. Levo uma vida normal, apesar da rotina de treinamentos.

_Os amigos, a família e a namorada estarão na Olimpíada?

_Acho que alguns irão. Já a namorada, ainda não sei. Ela trabalha.

_Muitos já o consideram a maior personalidade da história da Jamaica, à altura de Bob Marley…

_Não. Isso é exagero. O Bob Marley sempre será uma lenda. Sempre será maior do que eu.

_Você não se considera uma lenda?

_Ainda não. Acho que o Brasil me tornará uma lenda do esporte, depois da Olimpíada. Quero ser um Pelé ou um Michael Jordan na história. Estou muito bem preparado fisicamente e emocionalmente para os Jogos.