Uma nova versão da Bíblia em português chega agora ao Brasil com tradução direta do grego de Frederico Lourenço, renomado tradutor luso da Ilíada e da Odisseia, o primeiro dos seis volumes, com os quatro evangelhos. O projeto é da Companhia das Letras. O intelectual português também será um dos convidados da próxima edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) – onde ele lançará a edição brasileira de Livro Aberto: Leituras da Bíblia (Oficina Raquel), coletânea de ensaios sobre as escrituras.

Segundo o autor no prefácio da nova edição da Bíblia – feita a partir da versão grega, conhecida como Septuaginta – o novo texto “privilegia de forma não doutrinária, não confessional e não apologética a compreensão do texto grego”. Lourenço é professor de estudos clássicos na Universidade de Coimbra e é o mais recente vencedor do Prêmio Pessoa, um dos principais reconhecimentos literários de Portugal. Sobre o trabalho, que desenvolve desde 2014, ele respondeu a algumas questões da reportagem.

O senhor considera a comunidade católica de Portugal – ou alguma parte dela – intelectualmente estimulante?

Eu próprio já não sou católico há muitos anos. Não sou ateu, pois não me custa admitir que Deus exista, mas não pertenço a nenhuma igreja. Hoje, considero-me somente um historiador dos primórdios do cristianismo, com enfoque no Novo Testamento. Tenho bons amigos católicos, com quem tenho conversas estimulantes, mas como não estou inserido na comunidade católica é difícil para mim ter uma ideia dos católicos no seu conjunto.

Essa pergunta se relaciona com a anterior: como foi, na sua visão, a acolhida que a sua tradução teve entre pensadores religiosos em Portugal?

Não é fácil num país como Portugal, dominado desde sempre pela Igreja Católica, aceitar a nova realidade de uma tradução da Bíblia empreendida sem vínculo religioso e baseada apenas em critérios históricos e linguísticos. Apesar disso, houve uma acolhida positiva (sobretudo do público leitor). O meu trabalho não visa a pôr em causa a religião: apenas pretende dar a ler a Bíblia de uma forma objetiva.

Uma dúvida: é a primeira tradução para o português publicada em larga escala e feita fora do espectro dogmático/religioso? Pergunto isso porque, como o senhor bem sublinha no prefácio, a tradução e até a leitura da Bíblia quase sempre tiveram um estrito controle religioso, especialmente católico.

Em Portugal, a novidade é precisamente essa: é a primeira vez que está disponível uma tradução do Novo Testamento que não foi feita por um padre católico ou por um pastor protestante. Isso marca uma mudança, que algumas pessoas podem considerar incômoda.

Traduções brasileiras fizeram parte da sua pesquisa?

A minha opção foi no sentido de limitar a consulta de traduções em língua portuguesa, para manter a frescura da abordagem. Trabalhei sobretudo com comentários focados no texto grego (e não na sua teologia), em inglês e alemão.

Um articulista português, católico, disse que “a Igreja Católica não tem nada a temer com a tradução portuguesa da Bíblia grega feita sob perspectiva histórica, não confessional. O mesmo não direi de algumas denominações fundamentalistas em contexto protestante”. Isso é uma preocupação para o senhor, em algum nível?

Não é preocupação para mim, pois realizei o trabalho com plena consciência de que os meus critérios são diferentes daqueles que presidem as traduções católicas e protestantes. Mas sei que o protestantismo tem um largo espectro de denominações: penso que muitas estão abertas ao estudo crítico e histórico da Bíblia.

O senhor vê conexões de ordem literária, estética, entre os textos gregos (penso em Homero) e os livros da Bíblia – especialmente os evangelhos? É possível comparar esses textos de alguma forma?

O grande denominador comum é a língua grega. A palavra “evangelho” já ocorre na Odisseia de Homero. É muito importante perceber a história das palavras gregas que dão corpo ao Novo Testamento. Discordo dos biblistas sobretudo católicos que querem passar a ideia de que a língua grega em que foi escrito o Novo Testamento é “grego bíblico”, sem relação com a história anterior da língua grega.

BÍBLIA – NOVO TESTAMENTO

Tradução: Frederico Lourenço

Ed.: Companhia das Letras (424 págs., R$ 69,90)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.