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A professora Beatriz G. Mamigonian, da Universidade de Santa Catarina, passou os último 20 anos pesquisando em arquivos brasileiros e ingleses os vaivéns dos tratados e documentos referentes ao tráfico de escravos no Brasil. Ela se deteve no caso dos escravos livres, africanos traficados para o Brasil que foram libertados por pressões políticas da Grã-Bretanha. Ao todo, foram 11 mil escravos livres que o Brasil concordou em “libertar”. Concordou, mas não cumpriu. A prática de fingir que concorda e não cumprir acordos gerou a expressão “para inglês ver”. A pesquisa de Beatriz acaba de ser publicada em livro: “Escravos Livres: A abolição do tráfico de escravos no Brasil” (Companhia das Letras, 628 páginas). É um livro que muda a visão sobre o tema, um verdadeiro marco historiográfico. Entre outros aspectos, demonstra o papel do império britânico na libertação dos escravos e no reconhecimento do Brasil como nação – as duas situações estão interligadas e formaram o estado do Brasil, segundo Mamigonian. Ela concordou em conceder esta entrevista a ISTOÉ. Nela, Mamigonian chama a atenção para a atualidade do tema. A escravidão ainda diz respeito ao Brasil, país nascido nesse contexto trágico do tráfico humano. Nesse sentido, segundo Maigoniani, o País estabeleceu modelos e processos que foram posteriormente usados por países europeus implementarem o imperialismo no século 21.

Que motivos a levaram a realizar uma pesquisa dessa envergadura?

O trabalho começou como uma investigação sobre os africanos livres (emancipados dos navios negreiros) e depois se desdobrou numa investigação sobre o tráfico ilegal e seu impacto na política imperial. Foi ganhando envergadura ao longo do tempo, portanto. Foram duas décadas de pesquisa em muitos acervos, sobretudo brasileiros mas também britânicos. Eu já me interessava por entender como  as cidades brasileiras ganharam essa conformação espacial no século XIX, como eram formuladas as políticas públicas para o espaço urbano, num contexto em que, na Europa, a participação popular na política começava a ser respondida com repressão e reformas urbanas. O problema da administração das “classes perigosas” me levou ao da reprodução das desigualdades, à escravidão. Os livros que davam protagonismo aos trabalhadores, que buscavam se aproximar das suas experiências, me estimularam a buscar entender a abolição do tráfico pelo ângulo das pessoas que tiveram a vida transformada pela legislação abolicionista britânica, deixar de lado os gabinetes e palácios.

[posts-relacionados]No assunto escravos livros, há uma lacuna bibliografia e falta de pesquisas na área que seu livro procurou preencher?

Quando comecei, havia trabalhos sobre os africanos emancipados do tráfico em diversas partes do Alântico e do Índico (Jamaica, Cuba, Colônia do Cabo da Boa Esperança, Ilhas Maurício), mas ninguém os conectava, entendendo que eram uma categoria fruto do abolicionismo britânico. Como se estudava escravidão ou liberdade, eles pareciam um grupo anômalo, e em geral associado à escravidão. Eu busquei demonstrar que eram juridicamente livres, mas acabaram sendo tratados como escravos, e a explicação para isso (aqui no Brasil e em Cuba) era a continuação do tráfico ilegal. Como os africanos trazidos depois da proibição teriam direito à liberdade, e eles eram muitos, os africanos livres não puderam ter autonomia. Na década de 1860, quando o governo imperial emancipou os africanos livres depois de 25, 30 anos de trabalho, os africanos ilegalmente escravizados começaram a entrar na justiça reivindicando que eram africanos livres também. Observar a experiência dos africanos livres, de tanto tempo de trabalho forçado, para particulares ou para o governo, me chamou atenção para o fato de que outros grupos de pessoas livres eram assim exploradas: índios, prisioneiros, recrutas, crianças tuteladas. O sistema escravista precarizava a vida e as experiências de trabalho das pessoas livres. Por isso é importante dizer que não eram escravos, mas sim juridicamente livres e submetidos a trabalho forçado. Os paralelos com o presente são gritantes, infelizmente.

Que inconsistências, erros ou ambiguidades você observou nas análises e estudos passados sobre os escravos livres?

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Alguns trabalhos atribuíam à lei de 1831 a criação da categoria, quando ela deriva dos acordos bilaterais com a Inglaterra (o que os conecta com os outros grupos fora do Brasil). Além disso, como falei, associavam os africanos livres à escravidão e os vitimizavam, o que foi preciso esmiuçar melhor. O entendimento sobre a lei de 1831 também mudou agora: muita gente aprendeu que ela “foi para inglês ver”, como se tivesse sido criada só de fachada, sem intenção de reprimir o tráfico. A história é bem mais complicada e mais triste: nos primeiros anos depois da lei, as autoridades brasileiras (marinha, alfândega, juízes de paz) fizeram várias apreensões, tanto no mar quanto em terra, assim como a marinha britânica fez. Só que o tráfico não cedia, buscava praias e enseadas desertas ou privadas para os desembarques, e contava com a conivência de outros funcionários. Os proprietários de terras e escravos passaram a pressionar o governo imperial para poder comprar africanos novos, ilegais, sem risco de serem criminalizados. Era crime, pelo código criminal de 1830, reduzir pessoa livre à escravidão, e todos da cadeia do tráfico, do comandante do navio ao comprador do escravo, por lei, deveriam responder pelo crime. A pressão política, em um momento da regência em que o governo precisava de apoio pois estava fragilizado por revoltas nas províncias, fez crescer a “solução” da conivência com o tráfico e com a escravização ilegal. Depois que os representantes dos fazendeiros fizeram um bloco parlamentar e tomaram o poder em 1837, aí a política de repressão ao tráfico acabou e tanto o tráfico quanto a escravização ilegal cresceram muito. A lei de1831 serviu, da década de 1860 em diante, para que africanos escravizados reclamassem a liberdade. O discurso de que ela tinha se tornado letra morta foi usado pelos senhores e pelo governo para evitar reconhecer o direito de ser africano livre. A lei não foi para inglês ver, a conivência com o tráfico e a escravidão ilegal não foram naturais; foram resultado da política que os proprietários de terras e escravos impuseram ao país, a escolha de reforçar um projeto nacional centrado na agro-exportação baseada no trabalho compulsório, na marginalização dos libertos, no reforço dos laços de dependência com as pessoas livres pobres.

Qual foi a pergunta que norteou sua investigação?

Queria saber como vivenciaram esse estatuto intermediário, que no império britânico chamaram de aprendizado, mas descobri que aqui não se aplicou, não se tentou ensinar ofícios e incentivar a autonomia deles. Queria também revisitar as relações diplomáticas com a Inglaterra, que tinham sido abordadas pelas negociações dos tratados e pelas ações navais. Queria ver como os ingleses justificavam a liberdade dos africanos livres. Descobri que o interesse britânico pelos africanos livres no Brasil foi mudando à medida que avançava a campanha abolicionista. Depois da abolição nas colônias britânicas, em 1838, a continuação do tráfico e o reforço da escravidão no Brasil reforçava a situação de concorrência desigual: o açúcar e o café produzidos por mão de obra escravizada chegava mais barato ao mercado, os produtores das colônias britânicas não podiam concorrer e pressionavam o governo britânico a intensificar a campanha. Os britânicos queriam levar (e levaram) os africanos resgatados do tráfico para trabalhar nas suas colônias caribenhas. Então a campanha na década de 1840 se voltou para criticar o tratamento dado aos africanos no Brasil. Quando desencadeou o ataque final ao tráfico ilegal, em 1849, o representante de Lorde Palmerston no Brasil mirou também nos africanos livres, tentando passar a ideia de que protegeria aqueles que os procurassem. Os africanos foram em massa dar o nome no consulado britânico do Rio com a esperança de ver alguma luz no fim do túnel.

Em que aspecto sua pesquisa trouxe novidade ou ajuda a alterar a visão sobre o tema?

Se conhecia pouco sobre os africanos livres porque a própria memória da abolição, muito controlada pelos estadistas e pelos proprietários de terras, minimizou a existência do grupo. Descobri que muitas figuras da política imperial, como o Marquês de Paraná e a mulher dele, o Visconde de Sepetiba (Aureliano Coutinho) e o Duque de Caxias, tiveram africanos e africanas livres e se beneficiaram do trabalho deles, isto é, tiravam renda do trabalho urbano ou os empregaram nas fazendas, como se fossem escravos, sem salário. A lista dos que se beneficiaram do trabalho compulsório dos africanos é imensa. O governo imperial se serviu do trabalho dos africanos e africanas livres nas instituições, como os arsenais, hospitais, cemitérios e obras públicas. Até na construção do Palácio Imperial em Petrópolis teve mão de obra involuntária. O Estado imperial se serviu de mão de obra forçada extensivamente e protegeu aqueles que o faziam, como “incentivo” ao empreendedores, como no caso de cessão de africanos ao empreiteiro das obras públicas de Salvador, ou ao Barão de Mauá para o funcionamento da Companhia de Navegação do Amazonas.

Em que sentido a questão dos escravos livres afeta a vida brasileira de hoje?

O Estado nacional brasileiro, recém independente, não só promoveu o trabalho compulsório (de africanos livres, índios, recrutas, prisioneiros, crianças pobres) como foi conivente com a escravização ilegal de 800 mil africanos trazidos ilegalmente, e ainda dos seus filhos e netos. Esse “pequeno detalhe” foi convenientemente apagado da memória na República. Os trabalhadores não esquecem, claro, mas não se ensinou na escola, não ficou associado à biografia dos estadistas, não era entendido como um problema. E pior ainda, os descendentes dessas pessoas que foram escravizadas ainda sofreram o peso do racismo e continuaram a ser tratados como cidadãos de segunda classe, quando não como sub-humanos. Muitos ainda continuam, não têm os direitos fundamentais reconhecidos, são mortos pela polícia sem qualquer cerimônia. A arguição
em defesa das cotas nas universidades feita pelo Professor Luiz Felipe de Alencastro na consulta pública no STF se baseia no argumento de que o Estado brasileiro e a sociedade brasileira devem políticas compensatórias aos descendentes de escravos, visto que a manutenção da escravidão ilegal foi uma política de Estado.

Como se deu a atividade ilegal do tráfico de escravos, sob as visas grossas da monarquia?

Havia uma enorme cadeia de conivência (e de beneficiamento particular) com o contrabando de tudo, e com o contrabando de escravos se usava parte da mesma estrutura. Alguém na Alfândega tinha que emitir passaportes para os navios, e depois registrar a chegada “sem notar” que ia à África comprar gente. Ou os desembarques se davam fora dos portos, em locais litorâneos onde havia acerto com as autoridades. Os padres frequentemente batizavam como escravos os africanos recém-chegados, e a certidão de batismo servia de documento de posse. Os tribunais reconheciam a palavra dos escravizadores como prova, contra as dos escravizados, sem presumir a liberdade. Havia também funcionários que aplicavam as leis, por isso sempre houve embate. No livro conto como o guarda mor da Alfândega do Rio se beneficiava do contrabando e ainda passava por abolicionista e vendia informação para os ingleses.

A que a senhora atribui o fato de a Constituição de 1824 ter ignorado a concessão de cidadania aos africanos livres?

A Assembleia Constituinte de 1823 debateu a concessão de cidadania aos libertos africanos, como se fazia antes, e em outros territórios atlânticos e houve uma clara divisão entre os que gostariam de manter a política de incorporação dos africanos, uma vez alforriados, à sociedade e outros que queriam excluir os africanos, com o argumento de serem “bárbaros”. A Constituinte votou pela extensão da cidadania brasileira aos africanos, mas, depois que foi dissolvida, a Constituição preparada pelo Conselho de Estado e outorgada em 1824, deixou os africanos de fora. Não foram nem cidadãos brasileiros e nem estrangeiros, porque as unidades políticas de onde vinham não eram reconhecidas como estados-nação. Por isso, ficaram apátridas. O Brasil esteve na vanguarda da discriminação contra os africanos no mundo atlântico, implementou uma política de perseguição que só foi tomar forma nos impérios coloniais europeus mais tarde no século XIX, e embasou o imperialismo.


Que descobertas e surpresas você fez e teve ao longo da pesquisa?

Pesquisa em arquivo é muito empolgante, a gente tem muitas surpresas. Eu gostei de poder seguir os africanos ao longo de tanto tempo, desde o registro de emancipação na chegada até as petições de emancipação, vinte anos depois, quando contavam onde tinham trabalhado, reclamavam de terem sido tratados como escravos, falavam que queriam poder guardar o rendimento do trabalho e cuidar dos seus filhos. É muito raro se poder acompanhar por tanto tempo pessoas que não deixaram testemunhos, mas o governo imperial  ajudou, com tantos registros individuais. Encontrar os africanos livres mina que tinham reclamado por escrito ao administrador da Fábrica de Ferro de Ipanema, em Sorocaba, que o tempo de serviço deles tinha acabado, e anos depois, no Rio, novamente acionavam a o coletivo para fazer petições de emancipação contando toda a trajetória, foi especialmente marcante. Um deles, o Cyro, mandou um bilhete para o alto funcionário do Ministério da Marinha para quem ele trabalhava e que arranjou que fosse preso (pois resistia a emancipá-lo), ameaçando-o com uma retaliação de “preto mina”. Os africanos livres, como os outros trabalhadores, reclamavam por tratamento humano, condições dignas de sobrevivência e de trabalho, demandavam o fim das punições físicas. Mas a “boa sociedade” sempre resistiu muito a essas demandas e a qualquer movimento de busca por igualdade de direitos, pois implicaria em ameaçar seus privilégios.


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