Dezessete horas de terror marcaram o primeiro dia do ano no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, no Amazonas. Por onde se andava, no presídio localizado no Km 8 da Rodovia 174, era possível ver cadáveres carbonizados, corpos sem cabeça, mãos e pés amontoados em contêineres de obras, corações humanos que foram arrancados do peito com facões rudimentares. A cena chocante traduz a realidade trágica do sistema penitenciário brasileiro. Após 24 anos do extermínio do Carandiru, quando um grupo de policiais de São Paulo assassinou 111 presos sob o pretexto de conter uma rebelião, o massacre de agora, resultado de uma briga entre as facções Família do Norte (FDN) e Primeiro Comando da Capital (PCC), deixa 60 presos mortos, 112 foragidos do Compaj e outros 72 do Instituto Penal Antônio Trindade (Ipat).

Choque Parentes das vítimas e população de Manaus se desesperam com as mortes no presídio
CHOQUE Parentes das vítimas e população de Manaus se desesperam com as mortes no presídio

Quatro dias depois, outra matança, desta vez na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, na zona rural de Boa Vista, capital de Roraima. Orquestrada por detentos ligados ao PCC, a vingança resultou em 33 mortos. As vítimas, pertencentes à facção FDN, também tiveram os corpos desmembrados, decapitados e corações arrancados. Segundo o governo, os detentos quebraram cadeados e invadiram áreas onde estavam presos de menor periculosidade. O secretário de Justiça e Cidadania do Estado, Uziel de Castro Júnior, acredita que o crime é uma reação ao ocorrido em Manaus, no início da semana. O maior presídio do estado tem capacidade para abrigar 750 detentos, mas mantém sob custódia 1.475 pessoas. Destas, 940 estão presas preventivamente e 180 nunca foram ouvidas. Apenas nos primeiros seis dias do ano foram registradas 95 mortes nos presídios brasileiros – ou 25% do total de perdas em todo o ano passado.

As tragédias também comprovam que nas últimas décadas nada mudou no sistema carcerário brasileiro. Mais assombroso ainda é saber que elas vêm sendo anunciadas há alguns anos debaixo dos olhos das autoridades. Não era novidade para ninguém as condições degradantes dos presídios e a crescente rivalidade entre as hostes criminosas. Pior: investigações apontavam que uma catástrofe estava prestes a acontecer. Recentemente, a operação La Muralla, da Polícia Federal, encontrou indícios de um plano elaborado por membros da FDN para assassinar integrantes da facção paulista presos em Manaus. O Estado ignorou os sinais de que o sangue estava prestes a correr dentro das prisões. “O massacre de Manaus é a fotografia da bomba relógio que o sistema penitenciário brasileiro representa”, diz Marcos Fuchs, diretor adjunto da Conectas, ONG ligada aos direitos humanos.

O PRIMEIRO MASSACRE Disputa entre as facções FDN e PCC resulta na maior tragédia da história do sistema prisional do Amazonas
O PRIMEIRO MASSACRE Disputa entre as facções FDN e PCC resulta na maior tragédia da história do sistema prisional do Amazonas

A gravidade do episódio chamou a atenção de autoridades mundiais como o papa Francisco que, na quarta-feira 4, fez um apelo para que todas as penitenciárias se transformem em locais de reeducação. O Alto Comissariado das Nações Unidas (ONU) também se pronunciou e pediu que as mortes sejam investigadas de forma imparcial. Já o governo brasileiro tratou a matança com negligência. O governador do Amazonas, José Melo (PROS-AM), reduziu a questão à guerra entre facções. O problema, porém, não se resume a uma disputa entre grupos rivais. O presídio Anísio Jobim tem capacidade para abrigar 454 presos. Horas antes do massacre, o complexo contava com 1.224 detentos – um excedente de 770 pessoas. A superlotação é um dos fatores que alimenta o crime organizado ao oferecer farta mão de obra para ser cooptada. “As prisões não podem fomentar a criminalidade”, diz Alexander Araújo de Souza, promotor do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Rio.

O segundo massacre Dezenas de presos foram mortos em Roraima
O SEGUNDO MASSACRE Dezenas de presos foram mortos em Roraima

Reclusão digna

O governador também afirmou que “não tinha nenhum santo” entre os 56 mortos. A desastrosa declaração faz eco com a percepção de muitos brasileiros, que justificam a matança ao negar a criminosos o direito a uma reclusão digna. O pensamento é torto. Cabe ao Estado, de acordo com a Constituição, garantir a segurança dos detentos, não importando o crime que tenham cometido. Se não for assim, o país regressaria à era medieval. Em diversos aspectos, isso já acontece. A taxa de mortalidade intencional dentro do sistema penitenciário nacional é elevada. Uma pessoa que está presa tem seis vezes mais chances de morrer do que alguém que está em liberdade. No sistema penitenciário, a média brasileira de morte intencional no primeiro semestre de 2014 foi de 8,6 pessoas em um universo de 10 mil presos. O Amazonas supera o índice, com 17,6 mortes parta 10 mil detentos. “O Estado deveria ter total controle sobre a vida do preso”, afirma Michel Misse, professor da Universidade Federal do Rio e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

“O massacre é a fotografia mais trágica da bomba relógio que o sistema penitenciário brasileiro representa” Marcos Fuchs, diretor adjunto da Conectas

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Em outubro, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) realizou uma inspeção no presídio Anísio Jobim e detectou que ali os presos não possuem assistência jurídica, educacional, social e de saúde. A equipe classificou o espaço como “péssimo” para qualquer tentativa de ressocialização. O complexo não conta com aparelhos para detectar a entrada de metais nem equipamentos para bloquear sinal de celular. O consumo de drogas também é livre. A agente da Pastoral Carcerária do Amazonas, Maria Marques de Souza, visitou o presídio antes do massacre e relata que o local era abandonado pelo Estado, pelo Judiciário e pela empresa privada que administrava os serviços oferecidos. “Não existem direitos humanos lá dentro, só drogas, corrupção e guerra entre as facções”, afirma.

Privatização de presídios

O Brasil possui a quarta maior população carcerária do planeta, com 622 mil detentos. Se o mesmo ritmo de encarceramento for mantido, em breve alcançará o primeiro lugar. Como resposta imediata à superlotação nas cadeias, os estados apostam na construção de presídios. Não deveria ser assim. Com mais prisões, o território disponível para a ação do crime organizado aumenta. É a velha máxima: onde o Estado não atua, as facções encontram terreno fértil para prosperar. “Quanto mais jovens são jogados no sistema carcerário, mais se alimenta o crime organizado”, afirma Misse, da UFRJ. Em São Paulo, a construção de 22 unidades prisionais nos últimos seis anos fortaleceu a atuação do PCC. Das oito unidades erguidas recentemente pelo governo de Geraldo Alckmin (PSDB), cinco já estão superlotadas.

Quando se discute a precariedade das cadeias no Brasil, surgem os defensores da privatização. A tragédia de Manaus mostra que o raciocínio não faz sentido. O sistema carcerário do Amazonas é operado pelo consórcio Pamas, formado pelas empresas Humanizzare e LFG, que venceu a licitação para operar o serviço por 27 anos em cinco presídios. Somente em 2015, o governo pagou mais de R$ 70 milhões à Humanizzare pelos serviços na unidade. Além disso, uma revista realizada pelo Exército encontrou 25 celas de luxo utilizadas pelos “xerifes” das facções, com privilégios como televisões, ar condicionado e bebidas. Tudo com a conivência da empresa que administra o sistema. Segundo a investigação do CNJ, os presos provisórios dividem celas com detentos já condenados. Outro problema é o fato de integrantes de facções rivais cumprirem sentenças no mesmo presídio, muitas vezes separados somente por grades ou muros.

O papel do Estado

Para agravar a situação, houve uma queda de 85% nos repasses do governo federal aos Estados, tanto para a construção de novas penitenciárias quanto para reestruturar e modernizar as existentes. A partir disso, é possível concluir que, sozinho, o Executivo não conseguirá avançar na solução do problema. Países desenvolvidos contaram com o apoio do Judiciário para tratar a questão. No Brasil, na quarta-feira 4, a presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, recebeu em seu gabinete o ministro da Justiça e Cidadania, Alexandre de Moraes, para discutir a situação dos presídios brasileiros. Desde que assumiu o comando do Judiciário, em setembro, a ministra tem feito visitas surpresas em unidades prisionais de diversos estados. Na quinta-feira 5, ela passou o dia em reunião com os presidentes dos tribunais de Justiça da região norte. No dia seguinte, Moraes anunciou o novo plano nacional de segurança (leia quadro ao lado). “O plano tem como objetivo modernizar o sistema penitenciário”, disse Moraes. É consenso que os líderes do Judiciário precisam se empenhar em desenvolver estratégias, como dar celeridade ao julgamento de presos provisórios que respondem por 40% da população carcerária. Na outra ponta, o Estado deve assumir seu papel em setores chavescomo a educação, para impedir que o crime organizado continue corrompendo a parcela mais vulnerável da sociedade: jovens, negros e pobres.

Autoridades Cármen Lúcia recebe Alexandre de Moraes para discutir superlotação
AUTORIDADES Cármen Lúcia recebe Alexandre de Moraes para discutir superlotação

A reação do governo
Depois dos massacres da semana passada, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, divulgou na sexta-feira 6 o Plano Nacional de Segurança com uma série de medidas para reduzir a violência no País.

CENTROS DE INTELIGÊNCIA Serão instalados centros de inteligência que reunirão forças policiais e de investigação nos 26 estados e no Distrito Federal para que haja troca de informações sobre a situação nos presídios

MONITORAMENTO O Governo vai interligar sistemas de videomonitoramento, a exemplo do que foi feito nas cidades que sediaram a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos

COMBATE AOS HOMICÍDIOS O combate aos homicídios dolosos, feminicídios e à violência contra a mulher valorizará a prevenção por meio da capacitação dos agentes envolvidos com a sociedade

BLITZE O governo verificará lugares com iluminação ruim, veículos abandonados, fiscalizará estabelecimentos irregulares e a venda indiscriminada de bebida alcoólica para combater “brigas de bar”

MAPEAMENTO DE HOMICÍDIOS
O ministro anunciou um mapeamento dos homicídios, que começará por Natal, Porto Alegre e Aracajú, cidades com presídios mais vulneráveis. Sergipe é o estado que teve a taxa mais alta de homicídios no País

RADARES O governo prevê a ampliação de radares “Alerta Brasil”, com mais 837 câmaras da Polícia Rodoviária Federal, totalizando 935 unidades. Atualmente, são 98 câmeras para identificar veículos roubados


AMPLIAÇÃO DO BANCO DE DNA Uma frente de trabalho do plano inclui a ampliação da inserção dos perfis genéticos no banco de dados de DNA do governo federal e o compartilhamento nacional de impressões digitais com IMLs do País

COMUNICAÇÃO DIGITAL Haverá a ampliação da área de cobertura para a comunicação via rádio digital e uma maior intercomunicação com os órgãos de segurança dos estados. A medida terá como foco o monitoramento das fronteiras

 

Os números do sistema
Saiba como está a situação dos presídios do País

41%
dos presos no País são provisórios

6º lugar
é a posição do Brasil no ranking de países com os maiores índices de encarceramento*

622 mil
pessoas estão presas no País

372 mil
é a quantidade de vagas nos presídios

28%
dos detentos respondem ou foram condenados por crimes de tráfico de drogas

167%
é a taxa de superlotação nos presídios brasileiros

1.478
é a quantidade de estabelecimentos penais públicos no Brasil

* Entre países com mais de 10 milhões de habitantes
Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) referente ao anos de dez/2014


Menos verba para os complexos penitenciários
Investimento federal para as melhorias de presídios caiu nos últimos três anos (valores em R$ milhões)

Construção de Presídio
2014 – 111,5
2015 – 12,6
2016 – 17,1

Reestruturação e modernização
2014 – 40,1
2015 – 7,6
2016 – 33,5

Total de verbas
2014 – 202,3
2015 – 156,3
2016 – 300,6
(o crescimento da verba total se deve a pagamentos atrasados para capacitar servidores de SP, DF e MS)

85% dos repasses aos Estados para melhorias e construções de novas penitenciárias foram reduzidos pelo governo federal em dois anos

250 mil é o déficit de vagas no sistema penitenciário brasileiro

Como é lá fora
Exemplos de países que melhoraram as condições do sistema carcerário

Estados Unidos
Os detentos não recebem visitas íntimas. Eles têm permissão para falar com os familiares apenas por telefone e ainda assim são monitorados. Quando o preso obtém liberdade condicional, um agente o fiscaliza durante o período fora da detenção

Holanda
São oferecidos tratamentos de acordo com o crime cometido pelo detento. Juízes visitam unidades prisionais acompanhados de sociólogos. As prisões ficam próximas de fóruns para facilitar o contato entre magistrados e encarcerados

Inglaterra
Uma das medidas implantadas é a Justiça Restaurativa. A proposta é que a vítima e o autor do delito dialoguem sobre os motivos do crime pessoalmente ou por videoconferência. A expectativa é que o condenado enxergue o mal que causou e proponha uma maneira de reparar o dano

 


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