O mitológico líder peemedebista, Ulysses Guimarães, ao proclamar a nova constituição nos idos de 1988 foi profético no alerta: “o princípio inaugural da República é não roubar, não deixar roubar e colocar na cadeia quem rouba”. Eivada por esquemas de desvios sem fim, ferida nos seus princípios morais e curvada por uma crise econômica extenuante, decorrente em boa parte das ações delinquentes dos últimos mandatários, a sociedade brasileira experimenta mais uma transição de governo torcendo para que as coisas, finalmente, tomem jeito. No arco dessa trajetória, contados quase 30 anos, outro peemedebista desponta para assumir o manche. Michel Temer, o constitucionalista por convicção, ex-professor de direito, advogado e político curtido na arte da negociação, começa a escrever uma nova história para o País. De uma maneira ou de outra, nada será igual ao que passou. E as chances de melhora do ambiente são ao menos promissoras. Temer quer tomar como exemplo lições de dois estadistas de quatro costados. Winston Churchill, que pediu sangue, suor e lágrimas ao povo inglês antes da vitória na II Guerra. E Franklin Delano Roosevelt, o líder americano que anunciou um rigoroso programa de ajustes contra a grande depressão dos EUA. As biografias de ambos habitam de longa data a mesa de cabeceira do presidente empossado. E foi por elas embalado que Temer tomou o microfone na tarde da quinta-feira, 12, para proferir seu primeiro discurso como chefe de estado pedindo união nacional e apoio em torno de medidas necessárias (e sacrifícios) para o bem de todos. Como Churchill e Roosevelt, que enterneceram o coração do condestável da transição, ele também apelou ao patriotismo do povo e ao sustentáculo do Congresso. Agora no Brasil deve entrar em vigor o plano de estabilização, versão do “Ponte para o Futuro”, que pode assinalar o começo de um capítulo decisivo e alvissareiro da retomada. Existem, naturalmente, distâncias entre retóricas e práticas. O conjunto das propostas e ideias ainda precisa passar pelo crivo parlamentar em um acidentado percurso de articulações. Mas muitas delas induzem ao esperado caminho do reequilíbrio fiscal, das reformas estruturais e do estímulo aos investimentos e a geração de empregos que a maioria deseja. Temer aposta suas fichas e reputação nessa cruzada. Sonha escrever o nome no panteão dos salvadores da pátria. Sabe que terá curtíssimo prazo para mostrar a que veio e sabiamente previu dias difíceis pela frente. Ganhou pontos com a franqueza sobre as dificuldades e até engasgou ao recitá-las – quem não soçobraria diante de tamanho desafio? O Brasil não está hoje como a Inglaterra de Churchill no imediato pré-guerra, mas vive decerto a vigília de um cruento embate com a ordem econômica, tal qual a América de Roosevelt, devido às pedaladas e a outras lambanças mais que a deixaram débil.

Temer almeja retomar a institucionalização do Estado, garantindo que os poderes atuem de maneira livre e independente. Promete seguir a cartilha da “opinião pública”, longe dos acordos fisiológicos sem base programática. E garante não ter a menor pretensão a se candidatar em 2018. Apoiará, inclusive, qualquer proposta de fim do mecanismo da reeleição que parta do Congresso. Longe das digressões comuns àqueles políticos que temem ficar mal com seus correligionários, o novo ocupante do Planalto diz que tratará logo de romper com o continuísmo na ocupação da máquina pública, promovendo cortes dignos de nota. Fala em ao menos 10 mil contratados afastados numa primeira leva. Há dúvidas quanto à eficácia e, até, ao conteúdo moral dessa empreitada. Quem viu pela TV as cenas de pelegagem explícita em Brasília sabe como é difícil a um mandatário não se deixar seduzir pelos apelos dos bajuladores e partir direto para o sacrifício impopular de servidores, sem que no lugar desses não lance mão de outra leva de apadrinhados. Temer, com sua mirada de conciliador, cabelos lisos meticulosamente penteados para trás, cada fio em seu lugar como convém a um restaurador da ordem, garante que será firme no objetivo, embora cuidadoso. Há de se dar um crédito às intenções do postulante. Muitos dos que convivem com Temer dissertam caudalosamente sobre seu talento aglutinador. Sabem que ele não é um iluminado da práxis, nem possui a clarividência dos estrategistas de complexos planos de recuperação econômica. Mas defendem cegamente suas habilidades táticas.

Ao Brasil resta torcer. Acreditar que ele não dará sobrevida ao clientelismo e ao obscurantismo. Que reagirá a podridão dos subornos, à corrupção oficial e paralela, às negociatas promovidas pela burocracia estatal, ao conluio opressor de todas as máfias. Naturalmente, não é tributada unanimidade a gestão que se inicia. Mas pode-se dizer que Michel Temer, positivamente, quer fazer um governo em nada parecido com o de Dilma Rousseff. O substituto representa uma vasta aliança, uma frente transformadora para a qual convergem as esperanças de mudança da maioria, inequivocadamente demonstradas em manifestações de rua e pesquisas de opinião. Já na afastada Dilma, a mistura de arrogância, desfaçatez e hipocrisia atinge a calibragem perfeita. Sua capacidade de golpear a verdade, sob a tutela firme de agitadores e saqueadores do estado, passou dos limites. A caricatura de uma presidente que só quer ficar, porque quer – e faz qualquer negócio, incluindo aquele que cobra o preço do ridículo – só não é mais deprimente que a farsa montada para proteger aliados e apaniguados pilhados em flagrantes delitos. No entender dela e da turma que lhe acompanha, o futuro do País que se dane. Primeiro, há de se cumprir o interminável ciclo das ambições petistas com a sua peculiar capacidade de conceber a coisa pública como privada. Quer dizer, da sua exclusiva propriedade. Dilma ainda tem o respaldo de uma fatia exígua da sociedade que supõe ser a vida uma espécie de assalto diário contra os interesses da maioria. Mas não há de vingar.

No discurso de despedida, ela realçou a pregação do golpe que nunca existiu. Disse se sentir traída e injustiçada. É indignante para os brasileiros que assistiram a clamorosa destruição do estado ouvir tamanha malversação da realidade. Traição e injustiça foram praticadas por ela e o PT contra a Nação, por anos a fio, em nome de um projeto de perpetuação no poder. Manipulando criminosamente recursos federais, pedalando, escamoteando o rombo com espertezas deploráveis, Dilma coroou sua passagem com um flagrante estelionato eleitoral em 2014, que ela teima em esquecer. Há qualquer coisa de monstruoso nessa ópera de embusteiros que vingará por anos na memória dos cidadãos de bem. Os petistas tomaram tudo, ou quase. Arruinaram as finanças nacionais. Corromperam as práticas republicanas e promoveram a ineficiência endêmica da máquina. Não foi esta, como querem fazer crer em suas falas enganosas, uma obra de ficção, um mero pesadelo ou acusação virtual de opositores. O desastre aconteceu de fato. Dilma e sua entourage deveriam aproveitar o momento para pedir desculpas. Mas hoje estão mais interessados em sabotar os planos de quem quer consertar tantos erros. A Revista ISTOÉ, de sua parte, segue na vigilância sistemática ao poder. Crítica nos momentos necessários, embora reconhecendo os acertos quando eles aparecem, sempre em defesa dos interesses do Brasil – no compromisso que mantém há 40 anos.


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