Os violinistas fundadores do grupo nova-iorquino que se apresenta em São Paulo falam em entrevista a ISTOÉ da grandeza do quarteto de cordas como forma de arte

Grupos de clássicos costumam durar mais tempo do que grupos de rock ou jazz. Não só porque não há cobrança de juventude em relação aos músicos, como também principalmente porque a música clássica nunca sai de moda. Nunca. Não há revival porque tudo de certa forma é revival – salvo os revivals dos revivals, como no caso da música para instrumentos de época. Também não há riscos como os corridos em outros gêneros porque artistas clássicos são… clássicos. Já nascem mais ou menos consagrados. Quando são bons, já vão direto para o panteão.

No caso do Emerson Quartet, a excelência os eleva ainda mais no ranking dos grupos musicais. Fundado em 1976 por alunos da prestimosa Julliard School of Music, o Emerson String Quartet gravou dezenas de álbuns para o selo alemão Deutsche Grammophon, excursionou por todo o mundo, fez história e hoje é reconhecido como uma referência no gênero musical tido como mais clássico entre os clássicos: o quarteto de cordas.

O quarteto se apresenta terça, dia 12, e quarta, 13, às 21h, na Sala São Paulo, dentro da temporada da Sociedade de Cultura Artística.  No primeiro concerto, o grupo toca “Quarteto em lá maior op.41 n. 3”, de Robert Schumann; “Quarteto n. 3 Sz. 85”, de Béla Bartók, e “Quarteto n. 1 em dó menor op.51”, Johannes Brahms. Na quarta, “Quarteto n. 17 em si bemol maior K. 458 – A Caça”, de Wolfgang Amadé Mozart; “Quarteto n. 8 em dó menor op. 110”, de Dmitri Shostakóvitch, e ”Quarteto n. 14 em dó sustenido menor op. 131”, de Ludwig van Beethoven. São todas obras canônicas da arte do quarteto de cordas e da forma-sonata, criada no século 18 como paradigma do silogismo lógico da música.

Os instrumentistas são os violinistas Eugene Drucker e Philip Setzer, o violista Lawrence Dutton e o violoncelista Paul Watkins, que em 2013 substituiu David Finckel. Eles convivem praticamente todos os dias, pois são músicos residentes na Stony Brook University, em Nova York. É a quarta vez que se apresentam no Brasil; vieram em 2009, 2011 e 2014.

Uma das características do Emerson – nome dado em homenagem ao filósofo americano Ralph Waldo Emerson – é que o posto de primeiro-violino é compartilhado entre os violinistas Eugene e Philip. Eles concederam esta entrevista por e-mail utilizando o mesmo sistema de um revezar o outro.

Em uma carreira de 41 anos, vocês fizeram tudo na música: ganharam todos os prêmios, lançaram suas gravações completas pela Deutsche Grammophon. O que resta para vocês fazerem ainda? Sobrou algum desafio para a carreira do grupo?

Eugene Drucker – Tivemso muita sorte de tocar juntos por tantos anos, 34, com a mesma formação. Mas a primeira coisa que vem à mente quando você faz essa pergunta é acima de tudo a música. Em nossa opinião, e a de músicos e melômanos, é de que o repertório do quarteto de cordas é o mais importante – e mais profundo – de toda a música. Ainda há muitas obras com as quais não trabalhamos. Há tantos quartetos maravilhosos de Haydn, por exemplo. Mas também nunca sentimos de que estamos quites com as obras que tocamos por tantas vezes e mesmo gravadas. É como dizer a um ator: você representou os grandes papéis de Shakespeare, e aí, o que você pretende fazer? Bem, ele provavelmente diria que ele continuaria a fazer o que faz cada vez melhor, compreender os papéis mais completamente e continuar a experimentar e pesquisar para fazer algo mais profundo e importante. Essa é a nossa atitude, e isso explica em parte por que temos durando tanto tempo e ainda continuamos trabalhando com a grande música com a qual nos sentimos honrados em interpretar.

Como vocês sobreviveram às mudanças do mercado da música erudita – e sem perder a celebrada excelência do som que vocês criaram?

 Philip Setzer – A música de câmara é uma forma de arte íntima. Não tentamos competir com outras formas de música. Não conseguimos tocar em volume alto como uma banda de rock ou uma orquestra ou mesmo um piano solo, mas podemos explorar o mundo mais sutil dos sons sussurrados e cores. Um quarteto de cordas é formado por um grupo de pessoas que conversam entre si por meio da música. Tentamos projetar nossa execução para o público, mas, em certa medida, o público está escutando demais nossa conversa, nossos segredos (segredos musicais). Tentamos trazer a plateia para nosso mundo, mas às vezes gostamos de tocar tão forte e vigoroso quanto podemos, quando o compositor pede exige isso. Nossa dinâmica mais alta é tão alta quanto a nossa dinâmica mais suave é suave.  Tudo é uma questão de contraste.

Que estilo ou período vocês preferem interpretar?

Eugene Drucker –  O Emerson Quartet sempre tentou abordar igualmente todos os períodos da música. Temos nossos favoritos – Haydn, Beethoven, Schubert, Bartók, Shostakóvitch -, mas a resposta correta da parte de qualquer intérprete é que nossa peça favorita de música deve ser aquela que estamos tocando no momento.

Vocês são músicos residentes na mesma universidade, além de tocar o tempo todo juntos. Isso faz de vocês quase parentes. Como isso acontece na vida diária? Vocês brigam ou a convivência entre vocês é – perdoem o trocadilho – harmônica?

Philip Setzer –  Nós quatro somos bons amigos, como éramos quando David Finckel estava no grupo. A gente passa muito tempo juntos, especialmente quando estamos em turnê, mas não nos vemos o tempo todo, não como alguns filmes fazem você acreditar que a vida de um quarteto de cordas é desse jeito. Nós mantemos uma certa distância para que a gente não se canse um do outro. Mas também gostamos de comer juntos em uma noite de folga ou quando excursionamos juntos. Gostamos de festejar juntos depois de um concerto ou visitarmos as famílias uns dos outros. Claro que brigamos às vezes, mas a discussão acontece em torno da música, não acontece em um nível pessoal. Se você não discute, provavelmente quer dizer que você não se importa muito.

Qual foi a obra mais difícil que vocês tocaram em toda a carreira de vocês?

Eugene Drucker – Obviamente há algumas peças com as quais lutamos para tocar: todos os quartetos de Beethoven, em especial os seis quartetos op. 18; o “Quarteto em Sol Maior”, de Schubert; O “Quarteto nº 5” de Bartók; a “Suíte Lírica”, de Alban Berg. Mas eu acho que todos concordam – e isso pode surpreender o público – que o compositor mais difícil de tocar realmente bem é Mozart. Sua música é tão perfeita que nossas imperfeições como músicos e artistas ficam mais expostas por causa dela. Se ela soa fácil, estamos tocando-a bem.

Como foi a experiência de vocês no Brasil e o público brasileiro?

Philip Setzer –  A gente se apresentou no Brasil em 2009, 2011 e 2014 — algumas vezes no Rio de Janeiro, mas mais frequentemente em São Paulo. Nós nos impressionamos com a maravilhosa Sala São Paulo, e adoramos o interesse e o entusiasmo da plateia. Estamos felizes também por interagir com jovens instrumentistas em São Paulo.

 Vocês poderiam contar um episódio curioso que aconteceu com vocês? Imagino que um quarteto de cordas não tenha uma vida muito agitada…

Eugene Drucker – Em geral nossa vida não é exatamente agitada. Mas algumas coisas curiosas aconteceram com a gente através dos anos: as sete ocasiões em que ganhamos nossos nove prêmios Grammy; quando gravamos o “Quinteto com Violoncelo” de Schubert ao lado do grande Mstislav Rostropóvitch – que, depois de cinco dias de ensaios, gravações e concertos com ele na Alemanha, nos presenteou com histórias maravilhosas e grande quantidade de vinho e outras bebidas alcoólicas. Era difícil acompanhar Rostropóvitch! Também apareçamos cerca de 60 vezes entre 2000 e 2005 num trabalho teatral multimídia sobre a vida e o tempo de Dmitri Shostakóvitch, intitulado “The Noise of Time”, com uma companhia de teatro londrina chamada Complicité. Trabalhamos no espetáculo em Nova York, Los Angeles, Londres, Berlim, Viena, Paris e Moscou. Foi um trabalho maravilhoso que fizemos ao lado de atores incrivelmente versáteis e animados e de um diretor genial, Simon McBurney.

Vocês ensaiam muito? Que tipo de método vocês desenvolveram para ensaiar e estudar música?

Philip Setzer –  Cada um de nós tem uma vida ocupada como instrumentistas e professores. Assim, quando ensaiamos, nos concentramos em um repertório específico para uma turnê ou uma gravação. Cada um de nós prepara sua parte individualmente; quando nos reunimos, discutimos tempo, timbre, quanto tempo levamos entre as frases. Consultamos várias fontes de quartetos completos, assim como nossas partes individuais de violino, viola e violoncelo. Então decidimos as questões de articulação e dinâmica.

A música clássica não tem conseguido conquistar as novas gerações.  Será que (o filósofo alemão Theodor) Adorno tinha razão e estamos vivendo uma regressão da audição?

Eugene Drucker –   Não sei a que citação de Adorno você se refere. Eu acho que a cultura popular, ainda que certamente valiosa, tem um poder comercial muito forte atrás de si e ela tende a eclipsar o entendimento das novas gerações para as formas mais antigas de arte. A educação artística nas escolas decaiu no nosso país, e imagino que isso se repita em outros países também. No entanto, em nossas turnês pela América do Sul, ficamos particularmente impressionados pela paixão com a qual os jovens têm respondido à música que tocamos, e às vezes espantados com as longas distâncias que eles percorrem só para ouvir música clássica.

Em sua opinião, no futuro próximo, os músicos, inclusive quartetos de corda, poderão ser substituídos por máquinas com o desenvolvimento da inteligência artificial?

 Philip Setzer – Na música de câmara, existe um elemento pessoal na comunicação que não pode ser substituído pelas máquinas, não importa o quanto elas sejam sofisticadas em termos de programação. Ainda não ouvi uma simulação computadorizada de um único violino (sem falar numa seção de violino em uma orquestra) que soe parecido com a maneira com que um violinista real soe.