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Os olhos continuam cintilantes e ele segue produzindo gemas do cancioneiro popular brasileiro. Mas Chico Buarque de Holanda já não goza, aos 73 anos, da unanimidade de tempos passados. Ídolo da resistência à ditadura dos anos 1960 aos 1980, ele passou a ser questionado e até ofendido na rua por gente que não concorda com seu esquerdismo sobranceiro e postura de artista intocável. Seu último trunfo parece ter ruído em 28 de julho, quando postou nas redes sociais uma faixa do álbum “Caravanas”, que acaba de ser lançado: a canção “Tua cantiga”, em parceria com o maestro Cristóvão Bastos. Seus versos foram achincalhados por grupos de jovens militantes feministas. Mais radicais que suas mães e avós fãs de Chico, as mocinhas passaram a discutir no Facebook e no Twitter o conteúdo ideológico da letra e a chamar Chico Buarque de machista.

A canção traz a declaração de um homem apaixonado pela amante. Em nome desse amor, ele se diz capaz de abandonar tudo por ela, inclusive esposa e filhos. “Quando teu coração suplicar/ Ou quanto teu capricho exigir/ Largo mulher e filhos/ E de joelhos/ Vou te seguir/ Na nossa casa/ Serás rainha/ Serás cruel, talvez/ Vais fazer manha/ Me aperrear/ E eu, sempre mais feliz”.

COM NARA Chico Buarque gravou a primeira versão de “Dueto” ao lado de Nara Leão em 1979. Era então o artista da MPB que mais compreendia a “alma feminina” (Crédito:Divulgação)

 

O repúdio das neofeministas se misturou a inéditas manifestações de repulsa feminina. No domingo, dia 20 de agosto, Chico respondeu às primeiras inimigas de sua vida artística com um post em seu perfil no Facebook:

“– Será que é machismo um homem largar a família para ficar com a amante?
– Pelo contrário. Machismo é ficar com a família e a amante.
Diálogo entreouvido na fila de um supermercado…”

COM CLARA Ele improvisou palavras do jargão das redes sociais para cantar com a neta, Clara Brown, de 18 anos, uma nova versão da canção “Dueto”, de 1979: vovô descolado (Crédito:Divulgação)

É a resposta irônica de quem, até esses ataques acontecerem, era celebrado como o leitor mais profundo da “alma feminina”, que fazia duetos com Nara Leão e Maria Bethânia em libelos antigamente venerados por feministas. Agora que o álbum “Caravanas” saiu, é possível que as garotas radicais compreendam de que material são feitas as canções de seu mais recente bode expiatório.

São nove, duas regravações (“Dueto” e “A moças do sonho”). “Caravanas” é o 37º disco de Chico Buarque, que começou a carreira em 1965 e a gravar LPs no ano seguinte. Desde o início, os seus versos se revelaram dramáticos. O poeta assume a voz de vários personagens, fala no lugar deles ou então os comenta e ironiza . Assumiu a voz de um sonhador em “Quem te viu quem te vê” (1967), de um linchador de travesti em “Geni e o Zepelim” (1977), de um gay em “Bastidores” (1980) e de uma garota de programa (“Folhetim”, 1977), entre outros naipes do vasto e diversificado coral da sociedade brasileira.

COM THAÍS Em 2011, Chico gravou com a namorada e cantora Thaís Gullim a canção “Ah, se eu soubesse”), um diálogo de um par heterossexual apaixonado (Crédito:Divulgação)

As canções de Chico são teatrais, mesmo quando não são pensadas para uma peça. O traço só se acentuou com o passar do tempo e o rarear dos lançamentos, ao mesmo tempo em que começou a se dedicar à literatura. Quando em 2011 lançou o álbum “Chico”, apresentou a canção “Se e eu soubesse” em dueto com a namorada, a cantora Thaís Gullin, um diálogo de um casal hétero apaixonado. No álbum “Caravanas”, gravou “Dueto” ao lado da neta Clara Brown, de 18 anos – quase a mesma canção que havia feito com Nara em 1979, agora recheado de expressões da era das redes sociais, como “Instagram” e “WhattsApp”, como um vovô descolado. Em outras faixas, mostra um trabalho que pretende ultrapassar o tempo, ainda que marcado por ele. Além do amante “machista”, o álbum traz o jogador doido pelas “marias-chuteiras” (“Jogo de bola”), o hétero que se declara à lésbica (“Blues para Bia”), o escravo (“Massarandupió”) e as pessoas atraídas sexualmente por negros bandidos dos morros cariocas (“As caravanas”).

CARAVANAS Em seu novo álbum, o músico assume vozes de diferentes personagens em nove faixas (Crédito:Divulgação)

O tempo, o homem, as musas e até a admiração das feministas passam, tudo passa, mas não é esta a razão pela qual este novo trabalho – como o anterior – é o fruto do estilo tardio de um poeta que ruma na direção do epílogo da obra. O estilo pode ser chamado assim porque o artista quer se projetar na direção da imortalidade. É o que os filósofos chamam de “salto transcendental”. Chico se alça muito alto para tentar converter suas canções em objetos artísticos atemporais, acima dos dos fatos, das ideologias e das idiossincrasias neofeministas. Mas é trabalho do tempo transformar algumas dessas canções em clássicos.