Havia algo naquela mão direita que não poderia ser de Joyce. Afinal, observavam os músicos da época, mulheres não tocavam assim. Mas mulheres também não compunham assim e, quando o faziam, jamais usavam o feminino assim. Ainda supondo que usassem, poucas desafiavam os homens com tanta audácia, mais ou menos assim: “Oh venha me aprender / ser tudo o que já sou / Fazer o que faço no mesmo espaço em que você me achou / Cuidar do nosso lar, criar os bacuris / Botar cama e mesa, mas que beleza, venha ser feliz / Por mim já sei fazer o seu papel de cor / Já ganho o pão nosso de cada dia com o meu suor”.

Os versos são de 1981, da canção Meio a Meio, muito antes das correntes de afirmação ganhar as ruas. Joyce Moreno já havia estabelecido seu espaço desde 1968, ao lançar o primeiro disco, e se fortalecido em 1979, quando Essa Mulher, parceria com Ana Terra, foi gravada por Elis Regina. Seu novo disco, Palavra e Som, retoma o tema em momento oportuno em duas canções, mas é bem mais do que isso. O primeiro álbum autoral depois de Tudo, de 2014, reapresenta os dons de mãos direita e esquerda que fazem de Joyce um raro caso de inspiração de matriz bossa-novista contínua e inoxidável. Aos 69 anos, ela cria com esse frescor: “Ouve o silêncio do amor / Tão ensurdecedor / Que explode, cala, arrebenta / E a alma assustada nem tenta / Entrar nas masmorras do amor / Pedindo em seu favor / Que venha a revolução”.

Os versos agora são de 2017, de O Amor É o Lobo do Amor, de tons mais carregados que Joyce usa para falar do abuso doméstico. “Eu sou uma feminista da velha guarda”, ela diz. “Mas não gosto do anglicismo ‘empoderar’.”

A bela O Poeta Nasce Torto foi o encontro com o parceiro que ela nunca teve. Torquato Neto, morto em 1972, deixou anotações que revelavam sua vontade de trabalhar com Joyce. Ao revirar o material do poeta para um documentário, o cineasta Marcos Fernando encontrou uma lista de projetos escrita por Torquato. Dentre tarefas como fazer músicas para outros intérpretes, havia o desejo de compor um “rancho com Joyce”. “Acho que ele pensou em uma marcha rancho.” A letra que ganhou seus acordes é uma carta poema escrita a Ronaldo Bastos, em 1969.

Joyce assume letra e música em quase todas as 13 canções. Além de O Poeta, há parcerias em Dia Lindo (com João Cavalcanti, do grupo Casuarina) e Casa da Flor (com Paulo César Pinheiro). Dia Lindo tem a voz de violoncelo de Dori Caymmi, com a alma deitada em cada nota, e a bossa jazz Mingus, Miles e Coltrane é sua bem-humorada declaração de identidade, a revelação das fontes que se liquidificaram aos sambas de Noel e às harmonias de Tom para formar sua personalidade: o baixista Charles Mingus, o trompetista Miles Davis e o saxofonista John Coltrane. Aqui, uma boa chance de saber de Joyce de onde vem a levada de sua mão direita, da qual tanto se fala e se ouve em Palavra e Som. “É coisa do meu professor, Jodacil Damaceno, que também deu aulas a Guinga e Rosinha de Valença. Ele fazia a gente usar dedos que normalmente não usamos na direita, como o anelar e o médio. Por ele, eu teria virado uma violonista clássica.”

Mais tarde, Joyce escreveu ao repórter que tinha uma roseira na mão direita. Fez silêncio e voltou logo depois, para desfazer a curiosidade jornalística enviando um áudio de sua voz cantando uma canção popular: “A mão direita tem uma roseira, a mão direita tem uma roseira / Que dá flor na primavera, que dá flor na primavera”.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.