Em uma passagem da Bíblia, é revelado um momento delicado. “Então, arrependeu-se o Senhor de haver feito o homem sobre a terra e pesou-lhe em seu coração. E disse o Senhor: ‘destruirei o homem que criei de sobre a face da terra, desde o homem até o animal, até o réptil, e até a ave dos céus; porque me arrependo de os haver feito'”, diz um trecho do Velho Testamento. A citação traduz com perfeição a insatisfação com que a dramaturga espanhola Angélica Liddell acompanha a trajetória humana, a ponto de aquela passagem inspirar seu espetáculo Génesis 6, 6-7, que será exibido no Sesc Pinheiros hoje, dia 20, e amanhã, 21.

Trata-se da terceira parte da Trilogia do Infinito, formada ainda por Esta Breve Tragedia de La Carne e Qué Haré Yo Con Esta Espada?, esta última encenada no Festival Mirada e também no mesmo Sesc Pinheiros em 2016. Angélica buscou no Livro do Gênesis a explicação básica de seu teatro: o homem destrói pelo amor e não pelo ódio. Daí sua admiração pelo mito de Medeia que, inconformada com o descaso do marido Jasão, mata os próprios filhos. É Medeia quem capitaneia o espetáculo, buscando um fio que une a figura de Cristo e a de Dionísio.

São dores semelhantes a essa que a dramaturga catalã foca em seu espetáculo, uma forma de materializar símbolos na busca do homem em tentar relativizar suas inquietudes adormecidas. “A eloquência nasce da ferida. Isso é a criação. O trabalho é o amor”, disse ela, em entrevista por e-mail ao Estado, publicada no início do mês. “A poesia é a grande rebelião contra a violência. Nosso terrorismo nasce da beleza.”

Para Angélica Liddell, só se pode melhorar o ser humano destruindo-o, ou seja, violando a lei. E isso só pode ser feito, segundo ela, pelo aspecto moral da poesia. Para liberar sua ficcional tendência homicida, a autora trabalha com a angústia nascida do dilema estabelecido entre a palavra e a ação, ou seja, traduzindo para a linguagem artística, entre a poesia e a vida. Em Génesis, Angélica se lança na tarefa de transformar a violência real em poética e, com isso, atingir diretamente o público.

“Com a Trilogia do Infinito, Angélica Liddell continua dançando para não morrer, como uma Medeia estrangeira no século 21”, comenta a crítica espanhola María Velasco, do site Primero Acto. “Pela tragédia, por seu Deus, ou – como todos os leitores do Antigo Testamento sabem – pelo sexo e pela violência.”

Ainda em cartaz

Outro trabalho de Angélica Liddell, a peça Hysterica Passio, continua em cartaz na Oficina Cultural Oswald de Andrade, às segundas e terças-feiras, às 20h, com entrada gratuita. Com direção de Reginaldo Nascimento e estrelado por Alessandro Hernandez e Amália Pereira, em intensa interpretação, o espetáculo conta a história de Hipólito que, aos 12 anos, resolve se vingar dos pais, a esquálida enfermeira Thora e o pálido dentista Senderovich. O rapaz os acusa de maus-tratos. Novamente aqui, Angélica não faz concessão ao espectador ao expor com crueza as violências familiares habitualmente camufladas.

“A encenação abusa da teatralidade e explicita a angústia desses seres numa interpretação que transita com a alegoria e brinca com os expedientes do circo de feras e de horrores para tentar dar cor a uma vida de dor”, comenta Nascimento.

GÉNESIS 6: 6-7

Sesc Pinheiros

Rua Paes Leme, 195.

Tel.: 3095-9400. 4ª (20) e 5ª (21), 20h. R$ 40

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.