“Segundo o folclore de Uganda, as almas dos mortos ficam presas onde morreram. Por isso, famílias sem sepulturas visitam os jardins reais do Palácio de Mengo para ter paz.” Esse trecho faz parte de uma reportagem escrita pela jornalista sueca Kim Wall publicada na revista Harper´s em dezembro de 2016 sobre uma casa de tortura do ditador ugandense Idi Amin, em cujo governo milhares de pessoas foram assassinadas. Falar de tragédias e injustiças mundiais fazia parte do trabalho de Kim. Aos 30 anos, já havia escrito sobre os rituais de vodu no Haiti, o turismo pós-guerra no Sri Lanka, a realidade da vida em Cuba e na Coreia do Norte. Tinha uma carreira consolidada quando embarcou no submarino UC3 Nautilus, de fabricação caseira, para fazer uma reportagem sobre seu criador, o dinamarquês Peter Madsen. Os dois saíram das proximidades de Copenhague para um passeio no dia 10 de agosto, à noite. Um dia depois, o submarino foi encontrado naufragado, Madsen foi detido e Kim havia sumido. Seu torso, sem os braços e a cabeça, foi encontrado na segunda-feira 21.

SUSPEITO Peter Madsen, construtor de submarino que seria retratado em reportagem, foi detido após sumiço de Kim (Crédito: Bax Lindhardt)

Preso por “homicídio culposo com circunstâncias agravantes”, Madsen deu dois depoimentos diferentes. Na primeira versão, disse que Kim desembarcou com vida de seu submarino antes do naufrágio. Mas se corrigiu e afirmou que a jornalista sofreu um acidente e, depois disso, jogou seu corpo no mar. A polícia dinamarquesa trabalha com a ideia de que Madsen tenha provocado o naufrágio, mas ainda investiga o porquê do assassinato e o que o teria levado a esquartejar o corpo da jornalista. Madsen é bastante conhecido na Dinamarca como um inventor excêntrico e temperamental. Ele não tem antecedentes criminais. “O que mais me machuca é que ela o retrataria de uma maneira realmente justa, honesta e compassiva, porque era isso que fazia”, afirmou ao jornal “The New York Times” a também jornalista Caterina Clerici, amiga de Kim. Ingrid Wall, mãe da repórter, publicou uma nota no Facebook afirmando que ainda não era possível compreender a extensão dessa catástrofe e havia muitas questões que deveriam ser respondidas. “Ela deu voz a pessoas marginalizadas. Essa voz, que foi necessária por muito tempo, agora está silenciada.” Se em Uganda as almas ficam presas no local da morte, no caso de Kim, seu espírito apaixonado por histórias de vida ecoará para sempre em todos os textos escritos por ela.

O que aconteceu

10 de agosto
A jornalista Kim Wall embarca no submarino UC3 Nautilus ao lado do seu criador, Peter Madsen, para fazer uma reportagem

11 de agosto
O namorado de Kim liga para a polícia e alerta sobre seu sumiço. No mesmo dia, Madsen é resgatado afirmando que o submarino naufragou e que a jornalista havia desembarcado na ilha de Refshaleoen

21 de agosto
O torso de Kim é encontrado a 50 km de Copenhague, sem cabeça nem braços. Madsen muda o depoimento, diz que jogou o corpo da repórter na Baía de Køge depois de ela ter sofrido um acidente

O que falta esclarecer
A polícia suspeita que Madsen tenha provocado o naufrágio, mas ainda investiga o que de fato aconteceu e por que ele mutilou Kim